Eu sou um ser-tempo. Assim como o sol que banha esse dia, as flores que dos canteiros e as montanhas. São todos seres tempo. Como você também é. Somos todos parte desse conto para ser tempo moldado pela existência.
“Um ser-tempo é alguém que vive no tempo, e isso inclui você, eu e cada um de nós que existe, existiu ou existirá um dia.”
O que dizer-escrever sobre uma história que está intrincada no tempo, repleta de distintas narrativas? Ela que consegue interligar com maestria todas essas nuances e vivacidades num único – porque não dizer – ser-tempo?
Estou falando-escrevendo, é claro, da obra inesquecível de Ruth Ozeki, lançada em 2022 pela Editora Morro Branco.
A história de Nao e a história de Ruth
A história de Nao e também de Ruth nos leva para um paralelo entre tempos e lugares distintos. Lugares que, como num único suspiro, estranhamente e inesperadamente, começam a se interligar:
Nao vive no Japão com seus pais recém-vinda dos Estados Unidos elo fato do pai ter perdido o emprego. Ao abrir as páginas de Um conto para ser tempo, ela começa a falar diretamente conosco porque tem um grande projeto a ser cumprido: contar a história da vida de sua bisavó Jiko, uma monja de 104 anos, num diário secreto que tem a capa de à la recherce du temps perdu.
A tipografia é previsível e impessoal, transmitindo informações por meio de uma transação mecânica com os olhos de quem lê.
A caligrafia, em contrapartida, resiste ao olho, revelando seu significado devagar, e é tão íntima quanto a pele.
Em outro espaço-tempo Ruth vive numa ilhota semi-isolada no Canadá com seu marido Oliver. Dia dessas ela encontrou uma lancheira da Hello Kitty na praia, como apenas mais um punhado de lixo que o mar o devolve. O que ela não esperava é que lá contivesse um diário secreto de uma garota japonesa de 16 anos, um relógio, cartas e alguns sentimentos.
Se quiser saber a minha opinião, isso é legal e belo de um jeito fantástico. É como uma mensagem em uma garrafa, lançada no oceano do tempo e do espaço. Totalmente pessoal, e também real, direto do mundo ainda não conectado da velha Jiko e do velho Marcel. É o oposto de um blog. É um antiblog, porque é destinado a apenas uma pessoa especial, e essa pessoa é você. E se você leu até aqui, é provável que entenda o que quero dizer. Entende? Você já se sente especial?
Em busca de entender a história de Nao, Ruth começa a desbravar as páginas de seu diário. Entre compreender a caligrafia de Nao, compreender as palavras romaji ou os kanij, Ruth tenta seguir a leitura no ritmo em que o texto foi escrito. E nós também.
Enquanto isso, as marés de sua vida de escritora com bloqueio criativo também se desdobram. Não apenas a doença que levou sua mãe a assombra, mas a pilha de anotações que deveriam virar um livro de memórias também. Na verdade, Ruth não se considerada sequer uma romancista mais.
As histórias entrelaçadas de Um conto para ser tempo
O entrelaçar de narrativas em Um conto para ser tempo nos leva ora a dialogar com os sofrimentos de Nao, hora com os de Ruth. Ao mesmo tempo em que nos desdobramos nessas realidades tão distintas, nós nos deparamos com dualidades essenciais do mundo e das pessoas.
É difícil aprofundar em cada uma das narrativas sem ultrapassar linhas que são melhor compreendidas e sentidas durante a leitura. Tanto as leituras que fazemos das palavras de Nao, quanto a que fazemos da leitura que Ruth faz das palavras de Nao.
Pode parecer repetitivo e complexo, mas esse é um dos livros com conceitos complexos que se desbravam com facilidade sob nossos olhos. Em certos momentos eu simplesmente não conseguia parar de ler. Em outros, quando a vida real me chamava para os deveres indispensáveis, minha mente trafegava de volta para Nao e para Ruth.
Enquanto escrevo, revivo os pedaços de suas vidas que conheci como se eu, de alguma forma, como ser-tempo que sou, tivesse influenciado na forma com as páginas se desdobravam. Ou, quem sabe, no ritmo de leitura de Ruth, no desespero de Nao ou simplesmente na própria maré.
Como bem diria Jiko, é certo que todos têm um “supapáua“, mas precisamos descobrir, nessa vida, qual ele é (versão escrita da fala de Jiko para superpower). Talvez em precise fazer uma pausa agora, me sentar em zanzen e concentrar na minha respiração.
Minha velha Jiko diz que tudo acontece por causa do seu carma, que é um tipo de energia sutil que você causa pelas coisas que faz, diz ou simplesmente pensa, o que significa que você tem que observar a si mesmo e não ter muitos pensamentos perversos ou eles vão voltar e atingir você.
O Realismo Fantástico de Um conto para ser tempo
Em Um conto para ser tempo, é possível esperar uma história de realismo fantástico incrível e, ainda assim, se surpreender. Mais do que entremear vidas que se tocam sem se encontrar, Ozeki consegue captar a essência de quem somos em páginas que não falam sobre nós.
Falam sobre a vida, a luta do viver, a profundidade da existência, os efeitos do tempo sobre nós, nossa capacidade de absorver o mundo ao nosso redor e dançar – ou não – conforme a melodia.
Mesmo um estalar de dedos, diz, oferece-nos sessenta e cinco oportunidades de despertar e escolher ações que produzirão carma benéfico e mudarão nossas vidas.
Temas sensíveis em Um conto para ser tempo
Alguns temas que são abordados na história são cruéis e vis e, por isso mesmo, são completamente reais. Aqui vale a ressalva de que há conteúdo sensível no livro: depressão, suicídio e violência sexual.
A maior parte deles estão presentes nas narrativas de Naoko, que enfrenta uma dura realidade de regresso ao Japão. Apesar dela ser japonesa, assim como seus pais, viveu a maior parte da sua vida nos Estados Unidos, então, não é realmente vista como uma japonesa pelos alunos da escola em que passa a frequentar.
O ijime (bullying) que Nao sofre ultrapassa barreiras da nossa imaginação e são de cunho violento, sexual, psicológico e, de certa forma, cultural. Para eles, Nao não pertence àquele local e, por isso, merece sofrer e ser punida. A cada ato de violência que ela sofre, você imagina que ele se tornou o ápice e que é insuperável, mas infelizmente, a maldade humana se mostra sempre criativa demais.
Uma onda nasce das condições profundas do oceano. Uma pessoa nasce das condições profundas do mundo. Uma pessoa surge do mundo e avança como uma onda, até a hora de afundar novamente. Para cima, para baixo. Pessoa, onda.
Ao mesmo tempo, o ijime não é o único problema com o qual Nao precisa lidar. O pai tem tendências suicidas (e esse é também um tema bastante presente na obra) e a situação financeira e de decadência em sua casa não contribui para que ela vislumbre dias melhores.
Jiko Yasutani: a melhor personagem do livro
A histórias que Nao nos promete desde o começo, e que de certa forma se entremeia com a sua, é sobre a vida de sua bisavó, a monja Jiko Yasutani.
A personagem é uma verdadeira incógnita e, ao mesmo tempo, apaixonante e inesquecível. É impossível ler e não se afeiçoar à ela, não desejar conhecê-la e passar alguns dias em sua companhia no templo.
Esse é o jeito da Jiko, um dos superpoderes dela: só por estar no mesmo espaço, ela consegue fazer uma pessoa se sentir bem consigo mesma. E não é só comigo. Ela faz isso com todo mundo. Eu vi.
Assim, mais do que a personagem central do conforto e basilar de aprendizado para Nao, é também através dela que vislumbramos as sombras do passado da família Yasutani. E claro, é também quem nos ensina sobre quantos momentos cabem em um dia, a idade que alguém se torna adulto de verdade e como fazer zanzen.
Enquanto isso, do outro espaço-tempo que acompanhamos, Ruth faz buscas infrutíferas na internet sobre Nao, os Yasutani e Jiko.
E é fácil querer recorrer à nossa própria internet para realizar uma busca, quem sabe, mais rápida. Mas é então que o lembrete de o que você tem em mãos é um livro de ficção bate à porta: suas pesquisas serão tão infrutíferas quanto as de Ruth e tudo que se pode fazer é continuar a ler.
Os aprendizados de Um conto para ser tempo
Assim, perpassamos pela Segunda Guerra Mundial, e aprendemos sobre ódio e príncípios. Subimos as longas escadarias para o templo e aprendemos sobre o tempo.
Em algum ponto de minha vida, aprendi a pensar. Sabia como sentir. Na guerra, essas são as ações que devem ser esquecias.
Torcemos para a energia não cair e aprendemos sobre perseverança e o poder da espera. Vemos uma menina ser-tempo entrelaçada numa realidade cruel e aprendemos sobre maldade, pertencimento e escolhas.
Aprendemos que em um único estalar de dedos cabem 65 momentos. E que se você passar o dia estalando os dedos, terá a perfeita ciência sobre como passou precisamente cada um dos 6. bilhões e 400 milhões e 99 mil e 980 momentos que cabem em um dia.
“Tudo no universo está mudando constantemente, nada permanece igual, e devemos compreender como o tempo flui depressa se quisermos despertar e, de fato, viver a vida.”
Oscilando entre verdade e mito, ficção e realidade, entrelinhas e sentimentos, aprendemos sobre o poder da palavra escrita e o poder de quem a lê. Tudo isso coadunando para a perspectiva final de que Um conto para ser tempo é uma obra magistral e atemporal, capaz de ultrapassar as barreiras de cultura, espaço-tempo, vidas e ideais.
Uma leitura com Selo Retipatia de Qualidade, que é para ser guardada na mente e no coração e, ainda, como toda boa história, feita para ser revisatada. Seja daqui a um único momento, ou daqui a algumas centenas de centenas de bilhões.
Um conto para ser tempo
- Título original:
- A tale for the time being
- Autoria:
- Ruth Ozeki
- Autoria:
- Tradução Heci Regina Candiani
- Editora:
- Morro Branco
- Ano de lançamento:
- 2022
- ISBN:
- 978-6586015560
- Gênero:
- Ficção | Realismo Mágico
- Páginas (nº):
- 528p.
Do outro lado do Pacífico, em uma remota ilha do Canadá, Ruth encontra na orla da praia uma lancheira da Hello Kitty ― possivelmente detritos do devastador tsunami que atingiu o Japão em 2011. Dentro, há vários objetos desconexos, como um velho relógio de pulso, algumas cartas amareladas e o que aparenta ser um diário escrito por uma garota japonesa…
A cada página lida, Ruth se aprofunda cada vez mais nas histórias e é levada a um passado à beira do colapso. Em meio aos relatos escritos por mãos sôfregas e ansiosas, ela tem o presente e o futuro transformados conforme se aprofunda no abismo da jovem. Ainda há tempo para reconciliar o futuro de um passado condenado?
Em Um conto para ser tempo, Ruth Ozeki explora as relações entre leitor e escritor, passado e presente, fato e ficção, história e mito, e a essência do próprio tempo, apresentando um enredo deslumbrante sobre humanidade, afeto e pertencimento.
Livro recebido em parceria com a Editora Morro Branco.