As noites de lua cheia podem não parecer as mesmas com o variar dos anos, das épocas. Mas é a mesma lua prateada, molhada e vermelha que vai de encontro ao mar, que afeta o mundo ao redor e faz magia invisível fluir nas vidas dos amantes…
Noite Prateada, Molhada e Vermelha
Autora Cristiane Lopes
Coleção Yebá
Editora Quintal Edições
“É assim que são as histórias – cada um que as conta narra por um ângulo preciso, único e muitas vezes oblíquo. Por isso é importante que elas sejam contadas. A vida dos homens existe para ser contada.”
A Autora
Cristiane Lopes. “Nasci no verão de 1977. Minha primeira graduação foi concluída em 2001, na Universidade Federal de Minas Gerais. Estudar não tem fim. Desenvolvo projetos socioculturais na área de Biblioteconomia e escrevo ficção para matar minha sede em uma fonte imaginária de histórias inventadas, que, assim como a água, fluem e passam.”
Sinopse
Em Noite Prateada, Molhada e Vermelha, Cristiane Lopes nos apresenta Maria, uma mulher que precisa se redescobrir, em meio a um processo de separação silencioso e cheio de mágoas. O tema central do livro, entretanto, não é apenas o retorno de Maria a suas origens e a renovação de seu olhar para o mundo; no romance bem costurado, estão tantas mulheres e tantos amores, histórias que se revolvem e se envolvem, demonstrando que há sempre espaço para novas conexões e esperados reencontros. No reconto sobre uma Ilha em que tudo o que é real tem aspecto de mágico, narrativas curtas e complementares – feitas por vozes diversas – nos presenteiam com aspectos vários de uma mesma feminilidade. Elas nos falam sobre mulheres que, por se reconhecerem mulheres, não fazem menos do que criar o mundo e mover sua criação. O romance de Cristiane é, decididamente, uma reverência ao feminino.
Nas noites prateadas, molhadas e vermelhas…
As noites são assim prateadas, molhadas e vermelhas há tantos ciclos de vida que seria impossível contá-los. Características que transcendem a razão, são verdadeiras fontes de magia e transformação. Um ciclo termina, outro inicia e as páginas do livro seguem, mostrando as ligações eternas e cíclicas daquelas que caminham sobre a terra do mundo.
“A Roda da Fortuna, Renata, é como a roda de um tear. Ela tece o destino dos homens, trazendo-lhes sorte; sorte boa e sorte ruim. A sorte é o destino do homem em todo o seu tempo de vida, infância, juventude, maturidade. Sempre é possível ver os sinais de seu giro nas forças da natureza. Sinais ruins são vistos primeiro, sinais bons são mais difíceis de serem notados, por isso muitos homens perdem boas oportunidades na vida.”
De início somos apresentadas à Maria, que narra seu estado de espírito em melancolia, lento, vicioso, repetitivo. Típico daqueles que desejam encerrar um ciclo, mas não sabem ao certo como fazê-lo. O que ela precisa é por ponto final em seu alongado casamento de oito anos, com o atual desconhecido que se deita ao seu lado em silêncio todas as noites. Para tentar colocar ordem nos pensamentos, ela estipula o prazo, fará um trabalho voluntário de cinco dias, quando acabar, uma decisão estará clara em sua mente. Clara não, claríssima, ela espera.
“No casamento, muitas vezes as pessoas se fundem em uma só personalidade sem brilho, barrenta, sem definição de cor. É preciso que as pessoas não se fundam, é preciso que as pessoas se reúnam inteiras e permaneçam inteiras.”
O fio que faz o ciclo girar não para, a decisão vem, mas não apenas ela, um novo conhecido também, uma nova moradia, um retorno ao lugar que já foi lar, cartas antigas desenterradas e mais mulheres. É daí que temos Renata, Joana e Carla e tantas outras descobertas nos textos uma vez esquecidos, mas não perdidos, que vão nos falar de seus próprios ciclos, ocorridos há tanto tempo atrás, mas que continuam ecoando nos tempos que se sucederam.
“Por meio das frestas destas histórias, as pessoas poderão construir a parte não contada e, ao terminar, talvez possam vislumbrar um indício do amor antigo, que permanece em suspenso, a despeito do tempo, da distância e da disparidade de caráter entre homens e mulheres, reunindo-os com seus fios invisíveis e suas palavras não ditas.”
Viajamos no tempo, chegamos a era medieval, desvendamos os mistérios, o bebê entregue na taverna, o amor secreto, a liberdade para celebrar o sol, gerir e parir, casar-se ou não, acompanhar os filhos da forma que desejar e puder, criar vínculos e amizades, família que não se cria debaixo do mesmo teto, proximidade da morte, suspeita de bruxaria e apaixonar-se no porto, aquele que é tão idêntico à qualquer outro, seja de que canto for, mas que, ainda que com tanta sujeira, cheiro e bagunça, é belo.
“Todos os portos do mundo se parecem – eles fedem, são barulhentos e, na mais improvável das hipóteses, são irremediavelmente belos.”
Noite prateada, molhada e vermelho nos apresenta várias facetas do feminino, das escolhas feitas às que foram impostas, das vidas que foram geridas às que se perderam. É uma ode a tudo que se têm do feminino assim como a tudo que se é negado também. É como dizer ao sol, não brilhe, que está na vez da lua, cada qual a seu tempo, cada qual para ensinar ao outro, ainda que sem querer, que o ciclo é eterno, que a roda da fortuna não pode parar, não pára, e que sorte, essa pequena palavra é cheia de presságios, bons e ruins e que destino é aquele trajeto escrito para se caminhar sobre. Mas, como caminhar, isso, sem dúvidas, depende completamente, de quem dá os passos.
“Não se pode estacar em uma encruzilhada pelo resto da vida. Não é a escolha que torna amargo o caminho, é a forma como nos conduzimos no trajeto.”
Uma das belezas de conhecer a escrita da Cristiane Lopes foi ver a sutileza que cada personagem carrega em sua própria narrativa. Maria tem seu tom, carregado, certo de que, seja a decisão que for, sua vida está estática, e assim permanecerá. Renata já tem o tom da conclusão, a plenitude de quem se orgulha de todos os erros e acertos e sabe que, deixar de fazer ou falar é o que realmente traz remorso à vida. Já Joana é resoluta, decidia e tão certa de que histórias precisam ser escritas, independente de se querer escrevê-las. É do tipo que faz a roda girar, não espera o giro. E temos ainda Carla, que aprendeu que é preciso saber fazer o necessário, no momento em que convém. Mas estas não são as únicas vozes do feminino no livro. São várias, que aparecem nas linhas de outras, mantendo, ainda assim, suas próprias resoluções. São todas fortes, cada qual à sua maneira de ser e ter força.
“Então preciso contar, pra aliviar o peso que me prende à terra, ou pelo menos pra tentar aliviá-lo, porque no fundo, no fundo, o que nos prende é sempre o que não dizemos, o que não fazemos, o que não contamos nem mesmo a nós…”
E, assim, é importante falar do diálogo que o livro trouxe, bem além do que com cada personagem, com Renata. Já queria gostar dela, da personagem, afeiçoar, só por essa similaridade de nomes entre ela e eu. Só que Renata foi bem além disso, foi o fio condutor das histórias, entremeou em todas elas, fez surgir as reticências que ficaram e deixou a marca da alma livre impregnada nas páginas. Fez-me ver a própria Maria com olhos distintos no começo e no fim da história, fez diálogo com meu eu, chamando-me pelo seu nome. E, assim, se preciso fosse dizer qual personagem mais cativou em toda a história, não pestanejaria em dizer, Renata.
“É através do nome que nos reconhecemos no mundo e, mesmo que tenhamos um nome forte, seremos sempre mais que qualquer nome possa dizer sobre nós.”
Nessa história ainda preciso falar da força dos nomes, dos que nos são dados, dos que nos vestem e dos que ganhamos. Nomes são como capas protetoras, que servem de descrição, mas que estão longe de cobrirem tudo que somos, extrapolamos cada sílaba. É estranho e maravilhoso deparar-se com personagem com capa idêntica à nossa, nos misturamos mais à história do que em qualquer outra, porque parte nossa, ainda que sem querer, está lá, grifada e repetida como se fosse de outro. Mas é tão nosso quando dela, da Renata de lá.
“Todos deveriam ter três nomes. Um nome que lhe foi dado ao nascer. Um nome que a vida lhe apresente em forma de alcunha, e, por último, mas não menos importante, um nome que lhe faça jus como pessoa, por característica e definição. Mas nem sempre isso é possível; então, me chame de Renata.”
Sem dúvidas, a Noite Prateada, Molhada e Vermelha é aquela que envolve, que traz clareza na escuridão e revela o oculto, é o momento de deixar o interior tomar conta das ações e seguir mais alma que mente, mais emoção que pensamento. É a certeza que estamos todos atrelados, que somos parte do todo, que escolhas irão reverberar no eterno, porque o ciclo, esse, nunca pára.
“Não gosto de escrever. Mas reconheço que algumas linhas devem ser traçadas para que as gerações futuras cometam erros pelos quais valha a pena ter vivido.”
Alguns trechos para continuar o ciclo…
“Aqueles que um dia viram sua metade passar por si em hora pouco oportuna na vida, não se afobem. Quando a vida deseja aproximar duas almas, não há instituição terrena que impeça tal destino.”
“O amor por si só não é o bastante. O amor por si só também não condena ninguém à infelicidade perpétua. O amor precisa de cumplicidade, precisa de pele, precisa da necessidade orgânica de si mesmo, precisa se bastar. Precisa ser inteiro e lutar por causas próprias. Somente uma pessoa completa é capaz de estar com outra pessoa por toda uma vida com ternura e paz.”
“Todas as pessoas que encontramos em nossa vida nos ensinam alguma coisa. Como em todos os outros momentos, devemos estar atentos ao que nos é ensinado, pois nem sempre são boas as coisas e nem sempre o aprendizado é fácil. De todas as coisas que nos são ensinadas, há sempre aquelas que serão, por um certo tempo, impossíveis de compreender. Há conhecimentos que estão além de nossas possibilidades e há possibilidades que são freadas por nossas limitações imaginárias. É preciso aceitar esses momentos como parte de um grande processo que nos faz amadurecer e nos torna quem somos, sempre únicos, sempre indispensáveis no exato lugar em que somos levados pela vida a estar. Nem todas as respostas devem ser conhecidas dentro do que a nossa imitação humana chama de ‘a tempo e a hora’. Certas verdades têm seu momento de vir à tona. Isso não depende de nenhum de nós. É trabalho da Roda, que nunca deixa de girar.”
“A posse é um problema. A sensação de posse é um problema. Acreditar que o outro é posse é um problema. Acreditar que o outro é posse e que podemos dispor do outro como propriedade – rotulando, registrando, transferindo de proprietário – é um problema. Se nem minha pobre alma possui meu miserável corpo transitório, como posso me apropriar do corpo do outro, da alma do outro? Posso, no máximo, como no amor das canções do Vander Lee, um dos últimos românicos, desejar compartilhar o caminho – e, se esse caminho puder ser uma passarela repleta de pétalas de flores, melhor. Mas isso é no amor romantizado das canções, não no meu cotidiano. No meu cotidiano, isso não é praticável em perspectiva de amor.”
Aleatoriedades
- O livro Noite Prateada, Molhada e Vermelha faz parte da coleção Yebá, da Quintal Edições, que leva o nome da deusa brasileira, parte da mitologia dos índios Dessana, e que criou a si mesma quando nada existia, para depois criar o mundo. Não podia ter nada mais bonito do que ligar Yebá à literatura na qual a Quintal acredita: somos nós, mulheres, que nos geramos, para poder conceber também tudo aquilo que nos rodeia.
- Noite Prateada, Molhada e Vermelha foi recebido em parceria com a Editora, mais uma leitura cheia de sentidos e sentimentos, que tive o privilégio de conhecer. Os outros títulos da Editora já resenhados aqui foram: Fadas e Copos no Canto da Casa, Incômodo Conto, O Que Ficou por Fazer e Batismo.
- Esse foi o primeiro livro de literatura que eu não fiz as marcações das quotes com os habituais post-its. Usei lápis mesmo. Sublinhei palavra ou outra e fiz asteriscos e chaves para destacar às vezes pequenas frases, às vezes, passagens inteiras. Não sei dizer ao certo a razão e, talvez considerem heresia (eu própria o considerava, considero), mas a leitura pediu e fluiu de um jeito delicioso a liberdade que marcar assim permite. Não sei se farei em outros livros, talvez seja um novo ciclo iniciando, quem sabe? Mas, como um todo, foi uma ótima experiência, me fez ver o livro de outra maneira.
- Talvez por causa de ter feito as anotações do livro à lápis, nas próprias páginas, foi um dos que mais renderam quotes. Alguns trechos que gostei foram todos marcados e não são necessariamente quotes, mas passagens significativas na trama. Não coloquei nem metade aqui no post… mas acho que a seleção casou bem com as que mais se destacaram para mim.
- Desculpem a infinidade de vez que usei a palavra ciclo e suas variações no post… foi impossível evitar… rsrsrs
- Tive o prazer de conhecer a Cristiane Lopes, no lançamento do livro. Um papo que rendeu de assuntos da vida até Harry Potter, e que, sem dúvidas, me fez admirar a mulher por detrás de tantas outras, antes mesmo de me aventurar na leitura. Um obrigada carinhoso à Cristiane pela prosa boa e acolhida.
Noite Prateada, Molhada e Vermelha, da Cristiane Lopes, e os outros títulos da coleção Yebá, estão disponíveis na loja virtual da Quintal Edições.
Que a Força esteja com vocês!
xoxo
Ouvindo: Tenesse Whiskey do Chris Stapleton (na minha cabeça…)