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A Família Mandible: 2029 – 2047 ♥ Lionel Shriver

Resenha de A Família Mandible de Lionel Shriver, em edição do Intrínsecos, da Intrínseca.

A Família Mandible deseja as boas-vindas ao futuro! O seu dinheiro não vale nada, qualquer filigrana de ouro que você possuir agora pertence à soberania estatal. Seus títulos viraram papéis sem valor e os poucos empregos que ainda existem, não são suficientes para alimentar tantas bocas. Mas não se preocupe, afinal você está nos Estados Unidos da América e, uma vez maior potência mundial, sempre uma potência mundial, não é mesmo?

A Família Mandible (The Mandibles: A Family)
Lionel Shriver
Tradução de Vera Ribeiro
Intrínsecos | Intrínseca | 2021 | 448p
Disponível em Intrínsecos | Pré-venda Amazon
“Ser roubado – disse MGM – é uma experiência emocional. Muito mais intensa que a de não poder comprar um barco, de uma hora para outra. E não fomos roubados por saqueadores forasteiros, mas pelo nosso próprio governo.”
Resenha de A Família Mandible de Lionel Shriver, em edição do Intrínsecos, da Intrínseca.
Sobre Lionel Shriver

Lionel Shriver nasceu em 1957 na Carolina do Norte, Estados Unidos. Formada e pós-graduada pela Universidade de Columbia, publicou além de Precisamos falar sobre o Kevin O mundo pós-aniversário, The Female of the SpeciesChecker and the DerailleursOrdinary Decent CriminalsGame Control e A Perfectly Good Family.

Sinopse de A Família Mandible

Uma guerra fria de escala mundial reestrutura a ordem socioeconômica do planeta, criando novos eixos de poder. A União Europeia se desfaz, a China é agora a maior potência global e o longo período de prosperidade dos Estados Unidos chega ao fim. Da noite para o dia, o dólar despenca e, além do valor, perde também seu prestígio: uma nova moeda internacional, o bancor, chega para substituí-lo.

Florence Mandible sofre as consequências desse cenário como uma típica representante da classe média. Uma cabeça de repolho passa a custar 20 dólares, o racionamento de água torna-se padrão e o ritual matinal já não inclui café nem jornais.

Sem escolha a não ser acolher os familiares sob seu teto, Florence logo se torna responsável pela administração de um ecossistema familiar muito frágil, suscetível às mais dramáticas pulsões da natureza humana.

Em A família Mandible: 2029 – 2047, Shriver narra os percalços de um típico clã norte-americano moderno, levando o leitor por detalhes muito íntimos da psique de seus personagens. A saga dos Mandible é o retrato de um apocalipse menos catastrófico, mas igualmente perturbador: a completa ruína financeira.

Resenha de A Família Mandible de Lionel Shriver, em edição do Intrínsecos, da Intrínseca.
A Família Mandible: 2029 – 2047

Bem-vindo ao futuro e a nova versão do sonho americano!

Deixe de lado seu smartphone jurássico e pegue seu novo e inquebrável Flex. Além de caber na palma da mão, se estende até o tamanho de uma pequena tela de cinema com uma qualidade de imagem maligna!

“Dinheiro é uma coisa emocional. Como todo valor é subjetivo, o dinheiro vale o que as pessoas acham que vale. Elas o aceitam em troca de bens e serviços por confiarem nele. A economia está mais perto da religião do que da ciência. Se milhões de cidadãos, indivíduos, não confiam em uma moeda, a cédula é só papel colorido. Do mesmo modo, os credores têm que acreditar que, se concederem um empréstimo ao governo dos Estados Unidos, vão receber seu dinheiro de volta, caso contrário, não darão o empréstimo, para começo de conversa. Portanto, a confiança não é uma questão secundária. É a questão principal.”

Agora apresento a você a família Mandible: encabeçada pela próprio MGM, Magno Gran Man, ou Douglas Mandible, para quem não conhece a alcunha que seus descendentes lhe conferiram. O patriarca da família Mandible está quase chegando ao centenário na maior lucidez e atividade possível, gerindo a fortuna familiar como ninguém. Ainda que seus filhos, netos e bisnetos acreditem que já é hora dessa fortuna seguir para as gerações seguintes. É claro que ele não é mão de vaca, além dos luxos e coleção impecável de livros físicos – mesmo que todos leiam agora apenas pelas telas do Flex – garantiu os estudos de todos os descendentes.

“Quando a pessoa está imersa no é-assim-mesmo do difundido tempo presente, deve ser difícil saber a diferença entre tradições como sepultar os mortos e jantar às oito da noite e outras convenções. Todas têm o mesmo caráter fascinante normativo, que depois salta aos olhos da posteridade como ofensas contra toda a raça humana.”
Resenha de A Família Mandible de Lionel Shriver, em edição do Intrínsecos, da Intrínseca.

Mas o que ninguém esperava e aqui se incluem todos os descendentes dos Mandible e seus cônjuges, era a derrocada do dólar após um período fervoroso (ou deveria dizer congelante) de uma guerra fria que alterou a constituição econômica mundial. Todo mundo sabe que as crises vem sendo complicadas desde a Idapedra, mas isso é já demais. A inflação está incontrolável e a cada semana, é necessário mais dinheiro para comprar um repolho sequer. O fato é que a maior potência mundial agora é a China e os Estados Unidos da América, bem, são apenas os EUA agora.

“Matérias sensacionalistas em sites europeus retratavam as cidades americanas como A noite dos mortos-vivos, com saqueadores violentos e enlouquecidos correndo pelas ruas com televisores debaixo do braço, mas sem fontes de eletricidade nas quais ligá-los, enquanto os idosos assavam seus gatos nas fogueiras de seus móveis em chamas.”

O tiro fatal vem da moratória: o governo age, pelo bem da nação americana quando o Bancor, nova moeda mundial, é instituído. Os EUA não irão compactuar com isso. Todos os americanos devem abrir mão de toda e qualquer filigrana de ouro que possuir. E qualquer um que pudesse dizer ter uma reserva de dinheiro, já não tem mais. A ideia de riqueza foi totalmente usurpada da divisão de classes. Quanto mais se tinha, obviamente, mais se perdeu.

“Você não tem que acreditar para que continue a acontecer. A realidade tem isso de engraçado.”

Lionel Shriver nos apresenta isso através dos olhos apuradíssimos da família Mandible. Chega a ser equivocado dizer que essa é a história da derrocada dos EUA, de sua falência. Já que nada se resume apenas a questões de classe como também ideológicas, sociais, econômicas e raciais (a imigração cresceu exponencialmente nos últimos anos), a história não é de um país, mas de pessoas.

“É claro que, para os corretores profissionais da bolsa de valores, o dinheiro sempre fora imaginário – só uma noção, tão fácil de aparecer e desaparecer quanto os pontos de um videogame. Assalariados como a mãe de Willing achavam que o dinheiro era uma coisa de verdade. Visto que o trabalho era real e o tempo era real, era inconcebível que aquilo em que se convertiam o trabalho e o tempo fosse fino como um véu.”

A partir da série de desventuras que assolam a família Mandible, somos levados a conhecer os pontos de vista de seus integrantes. Ora estamos com Florence, Esteban e Willing, ora com Nollie, Douglas e Luella, Jarred, Jayne e Carter, Avery e Loweel com Bing, Goog e Savannah. A família Mandible.

“Eu pensava que tinha crescido num país em que a pessoa podia ter ouro, ou prata, ou lama, ou bancores, ou o que mais lhe aprouvesse, desde que não fosse, digamos, heroína. Num país realmente livre, é provável que também se pudesse comprar heroína.”

Aqui, não se trata meramente de uma crise econômica, soma-se à ela uma crise patriótica, moral. As pessoas perdem a confiança na soberania dos EUA, sentem-se traídas. E, de fato, o foram. Danos causados por governos e mais governos incapazes de enxergar a longo prazo deixaram a situação caótica. Em outras palavras, transformou os cidadãos em devedores-pagadores, tivessem eles a quantia que fosse para contribuir.

“[…] se não enchia a barriga nem protegia das forças da natureza, era lixo.”

No meio de uma crise econômica que se agrava a questões sanitárias, de fome, de miséria, de criminalidade, os reflexos do mundo em que vivemos estão todos dimensionados em 2029: a era da desinformação, das fake news, com o fim do jornalismo e dos jornais. O controle estatal colocando a mão pesada sobre os cidadãos com o discurso de bem maior da pátria americana. Só que ele está, na verdade, peneirando ouro para tentar tapar o buraco do desequilíbrio econômico.

“[…] ela estava com medo. Estava longe de ser um consolo estarem todos no mesmo barco, porque o barco estava afundando. Toda aquela conversa sobre dar a mão – sobre recorremos uns aos outros nas horas turbulentas – só funcionava quando quem estava sob pressão variava de uma semana para a outra. Não funcionava se todos sofriam uma crise ao mesmo tempo – ponto em que a comunidade se pulverizava em um grande número de pessoas na mesma situação, querendo e precisando das mesmas coisas, e não dispor dos meios para consegui-las podia levá-las a tomar aquilo de que precisavam pela trapaça ou pela força.”
Resenha de A Família Mandible de Lionel Shriver, em edição do Intrínsecos, da Intrínseca.

Mas toda mudança econômica e social vem atrelada a reflexos culturais. Aqui, estamos repletos deles, como o novo cumprimento fé e crédito e novos significados para palavras como maligno e relapso. Ainda, as questões culturais descritas chegam ao mercado editorial que não suporta o contingente de vendas online, que supera o presencial. Para completar, a Idapedra selou o destino das vendas virtuais: ninguém mais faz compras online. Ainda que todos vivam totalmente conectados, o sistema faliu, com ele, livros físicos são raridades que apenas os longevos (idosos) e colecionadores têm apego. Está tudo no mundo online, em versões pirateadas e gratuitas. Ninguém lê em papel.

“Se a Idade da Pedra nos ensinou alguma coisa, foi que o mundo pode ir pro espaço num estalo. Nos intervalinhos entre as desgraças, a gente bem que podia tentar se divertir.”

Conforme a história segue, o tema se destaca através de Douglas Mandible, que trabalhava como agente literário e teve que abrir mão de sua enorme coleção após a falência. Como também através de Nollie, uma escritora que sabe que agora, não existe no mundo lugar para sua profissão. Um reflexo direto dessa cultura online é o fato de que as escolas sequer ensinam mais a escrita a mão para seus alunos. E que literatura é algo ultrapassado, ninguém perde tempo lendo.

“Fazia tão pouco sentido se emocionar com livros de capa dura quanto irromper em prantos por causa de uma caixa manchada de disquetes. Os netos dele não faziam ideia do que era um disquete.”

Como se tivesse uma bola de cristal lá em 2016, quando A Família Mandible foi publicado, Lionel Shriver traz doenças intratáveis, incuráveis. Como resultado temos cumprimentos distantes, sem apertos de mão ou beijos no rosto. Algo bem próximo ao momento em que vivemos com a pandemia do corona vírus.

“Na esteira de tantas mortes por bactérias resistentes aos antibióticos […], os protocolos sociais tinham se tornado menos íntimos. Estender a mão para um cumprimento era um sinal revelador de que você era um sem noção que vivia no passado. Os beijinhos no rosto eram igualmente cruéis, e, se você tentasse dizer olá lascando um beijo direto na boca de um conhecido, era provável que ele metesse a mão na sua cara.”

A leitura é daquelas que te prende numa teia, você não consegue se desligar da história nem quando termina. É algo perturbador e provável demais para o mundo em que vivemos para se ler em estado de conforto. Mas ouso dizer que é um desconforto para lá de necessário. Os termos e avaliações econômicas podem dificultar a leitura para alguns, mas garanto que, se não entende a lógica por detrás da história, é melhor se atualizar do mundo ao seu redor.

“Chama-se terrorismo. Que não é só uma manobra de lunáticos religiosos. É um instrumento do Estado. Funciona transformando um punhado de pessoas em exemplo, e depois há um efeito multiplicador de deixar todas as outras pessoas se borrando de medo. O terrorismo poupa dinheiro.”
Resenha de A Família Mandible de Lionel Shriver, em edição do Intrínsecos, da Intrínseca.

Em 2029 temos a história da família Mandible sobre o fim de uma era, através de seus dramas pessoais. Em 2047 temos a sólida mudança de paradigmas, de conceitos, de ideologias que não se sustentaram anteriormente e alterados por força da necessidade. Uma mudança que extrapola as questões econômicas-sociais-políticas, é cultural, complexa, de todos e, ao mesmo tempo, individual.

“Todo mundo se adapta sem esforço sem esforço a uma vida mais luxuosa, e a melhora da situação sempre parece merecida. Mas ir no sentido inverso parece contrariar a natureza. O mais venenoso é que isso também parece injusto.”

Inteligente, sarcástica, distópica-realista, necessária. Ácida e bem-humorada como Shriver. Essa é a história da Família Mandible e você precisa conhecê-la. Afinal, você sabe quanto vale o seu dinheiro?

Glossário de A Família Mandible

O livro de Shriver reinventa e é sagaz em várias de suas colocações. Muitas palavras já existentes hoje ganham novos significados e muitos termos são criados. Esse é um glossário criado por esta que vos fala, a partir da interpretação da leitura, que pode ajudar outros leitores. Aliás o glossário está nas imagens do post.

Resenha de A Família Mandible de Lionel Shriver, em edição do Intrínsecos, da Intrínseca.
Intrínsecos 028 de Janeiro de 2021: A Família Mandible

A Família Mandible foi publicado primeiramente pelo Intrínsecos, clube de assinatura da Editora Intrínseca em edição do mês de Janeiro/2021, #028. Mas já está em pré-venda na Amazon!

Além da edição em capa dura colorida, seguindo o estilo do clube, o livro vem sempre bem-acompanhado de brindes (marcador de página, postal com a capa comercial do livro e brinde surpresa, nesse mês, um calendário de parede e um planejador) e da Revista Intrínsecos.

A edição da Revista foi das mais ricas e ajuda a situar o leitor nos pontos-chave da obra de Lionel Shriver. Em primeiro lugar somos apresentados à história dA Família Mandible e a carreira e vida da autora, segue para um incrível conto O Desalento do Sr. Bainguella, uma distopia brasileira que nos leva para o futuro de Shriver. Não só isso, a Revista traz textos sobre cultura e ouro, bem como um remonte de sobrenomes marcantes da literatura.

Para quem gosta de tramas futuro-distópicas-realistas, vou deixar dicas de ficção científica, mas também afiadíssimas e cheias de humor ácido de Kurt Vonnegut: Piano Mecânico | Matadouro Cinco | Café da Manhã dos Campeões.

Fé e crédito para você!

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  • Angela Cunha

    Eu ainda me surpreendo muito com seu capricho com as resenhas!
    A beleza das fotos e o conteúdo sempre inovador!
    Primeira resenha que leio assim, completa e mesmo não tendo dinheiro nem pro chiclete, acredito que a história da família é o que vai muito além!!
    Com certeza, fiquei muito curiosa para ler!
    Beijo
    Angela Cunha/ O Vazio na flor

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