Piranesi: a experiência de leitura
Quando abri as páginas de Piranesi, apesar das altas expectativas, não imaginava que seria tragada para outro mundo. Levada pelos amplos salões da Casa, os observei a partir dos relatos de Piranesi. E a leitura não apenas me prendeu, mas fez com que eu fosse incapaz de largá-la até chegar à última página.
Ainda assim, Piranesi é, sem dúvidas, uma leitura que não se encerrou na última página. Muito pelo contrário. Ela ainda está impregnada em mim. Cada onda, cada pássaro, cada recanto que Piranesi me apresentou do Mundo e que agora, me fazem pensar mais e mais sobre a verdade do meu mundo, tanto quanto a nossa capacidade de vivenciar o agora e a realidade na qual estamos inseridos.
Desde que o Mundo é Mundo, é certo que existiram quinze pessoas. Provavelmente existiriam mais; mas sou um cientista e devo proceder de acordo com as evidências.
Piranesi: a narrativa, a história
Piranesi é narrado em forma de diário e, a partir desses relatos nós conhecemos a pessoa que escreve, que vive na Casa, que é também todo o mundo existente e o Outro, o único outro ser humano que está vivo no Mundo.
O Mundo é repleto de amplos salões, sempre com uma infinidade de estátuas, dos tamanhos mais diversos. Além disso, os andares inferiores são constantemente invadidos pela maré, e os superiores, são tomados pelas nuvens. Além do Outro, as companhias de Piranesi são as aves, o sol, as estátuas e os Mortos. Esse é todo o seu Mundo. O Mundo é a Casa.
Nenhum Salão, nenhum Vestíbulo, nenhuma Escadaria, nenhuma Passagem é desprovida de Estátuas. Na maioria dos Salões, elas cobrem todo o espaço disponível, ainda que se encontre aqui e ali um Pedestal, Nicho ou Absidíolo Vazios, ou mesmo um espaço vago em uma Parede incrustrada de Estátuas. Essas Ausências são, ao próprio modo, tão mistão misteriosas quanto as Estátuas em si.
Com o tempo, Piranesi começa a descobrir mensagens de desconhecidos e um certo 16, que agora está presente no labirinto, que é como o Outro chama a Casa. O problema é que 16 é alguém maligno e que deseja enlouquecer Piranesi. Aqui nossa história abre os braços e a maré fica revolta: mais mistérios surgem, peças de quebra-cabeças pelo labirinto que parecem difíceis e até impossíveis de serem desvendadas são incluídas página a página.
Piranesi: as perguntas são o cerne da história, não as respostas
Assim, enquanto se conhecia Piranesi e a Casa, passei a imaginar o que este mundo, onde ele está, porque e como existe. E, talvez, essas não sejam as perguntas corretas a serem feitas. Ainda que o porquê central seja as perguntas que estamos fazendo, é essencial que façamos as perguntas corretas. Enquanto refletia sobre elas, várias outras surgiram. Não apenas sobre Piranesi e sua Casa, mas sobre o Outro, sobre 16, as aves, as marés, as estátuas, as nuvens e cada mero acontecimento presente nos diários.
Uma das questões mais intensas sobre a leitura é que você se sente no lugar de Piranesi, porque o seu conhecimento é o que ele lhe fornece, com as arestas de sua própria compreensão sendo o limitador enquanto se cria inúmeras possibilidades e teorias. Criei várias delas só para, algumas páginas depois, começar a duvidar.
Essa percepção – a percepção da Insignificância do Conhecimento – me veio na forma de uma Revelação. Quero dizer com isso que eu soube se tratar de uma verdade antes de entender por que ou quais passos me levaram até ela.
Piranesi: o livro e o artista
O primeiro passo intrigante que a história me trouxe foi o próprio nome Piranesi. Era um nome que eu já havia ouvido antes, mas que a assimilação com outra coisa não foi imediata. Uma rápida busca no Google trouxe o nome Piranesi à tona: Giovanni Battista Piranesi, o artista responsável por criar labirintos oníricos e encerrados em si mesmo, como nas imagens a seguir:
Olhar para sua arte foi como colocar mais uma peça no quebra-cabeças labiríntico que é a história criada por Susanna Clarke. Afinal, não há modo melhor de relatar a leitura de Piranesi: é um labirinto, um quebra-cabeças que, a depender do ângulo e modo como se encara, a percepção, a beleza, a profundidade e magia, é realçada.
O realismo mágico presente na obra encontra o tom perfeito, que no começo faz parecer quase uma ficção científica. Quase. O realismo das experiências narradas, do sentimento humano exposto como nervo faz da Casa o mundo real, e dele, a magia que existe é não apenas onírica, mas especialmente fluida e elemento-chave da existência em si.
O Mundo parece Completo e Inteiro, e eu, seu Filho, me encaixo nele perfeitamente. Não há, em nenhum lugar, qualquer disjunção em que eu deveria me lembrar de algo, mas não me lembro, em que deveria compreender algo, mas não compreendo.
Piranesi e a busca pela grandeza
Existe, dentro dessa concepção onírica-mágica da história, uma busca por um propósito maior, uma dádiva esquecida pelo tempo que é perseguida desumanamente por muitos. Grandeza, poder, conhecimento ilimitado, uma comunicação com o mundo que dizem que a humanidade perdeu com o tempo. É tudo isso que buscam nos salões da Casa. Mas é claro que um grande conhecimento não viria gratuitamente, não seria alcançado sem algum esforço, sem dedicação, empenho e entrega.
Uma busca que vai sendo explorada e permeada ao longo da história e que se revela ao leitor pelas entrelinhas. Como diria Rubem Alves,
Ah! Como as entrelinhas são importantes! É nelas que estão escritas as coisas que só a alma pode entender.
Rubem alves
Em Piranesi, quando se reflete sobre o que seria essa grandeza perseguida, esse saber inominável, é necessário analisar e compreender toda a história para além das palavras. Deve-se compreendê-la em seus gestos, pensamentos, ações, sentimentos e sentidos. Piranesi nos diz o quanto a o universo trabalha em sentido de trocas, de ciclos. O que se deseja pode ser alcançado, mas, especialmente, há sempre um retorno necessário, uma entrega nossa, uma contrapartida. Nada realmente valoroso virá sem empenho e os devidos esforço e dedicação.
Uma frase me intriga: O mundo estava se comunicando o tempo todo com o Homem Antigo. Não entendo porque essa frase está no pretérito imperfeito. O mundo ainda fala comigo todos os dias.
Piranesi em tempos de pandemia
É um contraponto interessante que Piranesi chame o Mundo repleto de salões de Casa, especialmente quando pensamos a época em que estamos inseridos. A pandemia da covid 19, nos trouxe um novo paradigma de relação com a nossa própria Casa, tanto em termos positivos quanto negativos. E a leitura de Piranesi ainda em tempos que sofrem com os efeitos pandêmicos e restritivos torna sua análise ainda mais imperiosa.
A Casa, na brilhante história criada por Susanna Clarke, é o próprio universo em si, tal qual nossas próprias casas-residências-lares se transformaram desde o começo de 2020. Não foram apenas as restrições colocadas do lado de fora, foi o novo universo entre as paredes que, por vezes, sequer suportam todos os seus inquilinos, que mudou. Piranesi vem, ao mesmo tempo como um convite à reflexão sobre esse nosso convívio alterado, tanto quanto na relação confusa, intensa, cotidiana que estabelecemos com a nossa própria companhia e entendimento do pertencimento ao espaço que habitamos.
Piranesi é uma história repleta de camadas, infinitas como os salões da Casa. É um livro para se ler hoje, amanhã e depois. Uma história para guardar com carinho no coração e revistar, sempre. Porque, se a Casa é o Mundo, é difícil que fiquemos afastados dela por tempo demais. Somos seres sociais, que precisam ver o mundo, a casa, o mundo e a casa. Do lado de dentro e do lado de fora. Uma história com Selo Retipatia de Qualidade.
Então, senhor, que seus Caminhos estejam seguros – falei -, o Chão sob seus pés permaneça intacto e a Casa encha seus olhos de Beleza.
Piranesi
- Título original:
- Piranesi
- Autoria:
- Susanna Clarke
- Autoria:
- Tradução Heci Regina Candiani
- Editora:
- Morro Branco
- Ano de lançamento:
- 2021
- ISBN:
- 978-6586015317
- Gênero:
- Ficção | Fantasia | Realismo Mágico
- Páginas (nº):
- 256
Piranesi vive na Casa. Talvez, sempre tenha vivido.
Em seus diários, dia após dia, ele registra de maneira clara e cuidadosa todas as maravilhas que encontra: o labirinto de salões, as milhares de estátuas, as marés que invadem as escadarias, as nuvens que se movem em uma procissão lenta pelos cômodos de cima. Habitualmente, encontra-se com o Outro, sua única companhia e com quem divide as pesquisas e explorações. Às vezes, Piranesi também leva oferendas aos mortos, mas, na maior parte do tempo, está só.
De repente, mensagens começam a surgir no chão, rabiscadas a giz. Há alguém novo na Casa. Mas quem é essa pessoa e o que ela quer? É amigável ou traz consigo destruição e loucura, como diz o Outro?
Textos perdidos têm de ser encontrados. Segredos esquecidos precisam ser revelados. O mundo que Piranesi pensava conhecer está se tornando obscuro e perigoso.
A Beleza da Casa é imensurável; sua Bondade, infinita.
Artes de Giovanni Battista Piranesi em domínio público, disponíveis em Rawpixel. | Livro recebido em parceria com a Editora Morro Branco.
A Beleza da Casa é imensurável; sua Bondade, infinita.