Poucas aventuras têm o poder que as páginas d’O Feiticeiro de Terramar guardam: não apenas nos transportam para um novo mundo, como nos fazem ver aquele mundo como repleto de possibilidades, complexidade e realidade fantástica.
Você nunca pensou sobre como o perigo pode circundar o poder da mesma forma como a sombra envolve a luz?
Da narrativa de Ursula K. Le Guin à história do Gavião
O Feiticeiro de Terramar foi minha primeira experiência com a escrita de Ursula K. Le Guin e eu sei que, não importa quantos outros surjam, não escolheria de outra forma. É uma narrativa leve, cativante, que mantém a descontração da história ainda que ela seja permeada por trevas.
Além disso, ela nos conduz pela história do Gavião (e eu o chamarei assim aqui porque não ouso revelar seu verdadeiro nome, que me foi segredado sob imensa confiança), com uma presteza e objetividade que deixa tudo mais interessante. Ela leva o tempo necessário para descrever o que realmente é preciso. Assim, uma única página pode conter um momento ou vários anos. É um equilíbrio narrativo que Ursula domina tão bem que engrandece a história, mostrando o necessário e deixando as entrelinhas para interpretação do leitor.
Para ouvir, é preciso ficar em silêncio.
Assim, com sua narrativa cativante, Ursula nos apresenta o Gavião quando ainda era menino e, com a descoberta de que ele possuía poderes dignos de se tornar um grande feiticeiro, seu desejo crescente por fama, conhecimento e poder começa a ser alimentado.
O destino então leva Gavião até a Escola de Roke: um lugar incrível em que aprendizes de todos os cantos vão para estudar e aprender magia.
Mas a necessidade por si só não é suficiente para libertar o poder: é preciso conhecimento.
Ao mesmo tempo que Gavião aprende, as tentações do seu imenso poder e do seu desejo por glória e fama aumentam. Assim, sua jornada o levará a combater não apenas dragões, mas uma sombra de poder inimaginável, que ameaça toda Terramar e não apenas sua própria vida. É apenas o começo de sua jornada…
A jornada do herói em Terramar e a dicotomia de luz e trevas
Talvez relatar apenas nesses breves parágrafos a jornada de Gavião seja, de certa forma, um sacrilégio. A tradicional jornada de crescimento do herói e dicotomia entre luz e trevas têm um condão e ritmo próprios em O Feiticeiro de Terramar.
Aqui, a dualidade entre bem e mal, luz e trevas, habita a todos e a tudo, tanto quanto o próprio poder em si. O processo de aprendizado e de autoconhecimento de Gavião se inicia nessas páginas e mostra grandes mudanças. Ao mesmo tempo nos lembra: esse é um grande feiticeiro e vou te contar sua história antes disso.
Acender uma vela é lançar uma sombra…
Dentro da ideia tradicional de luz versus trevas, algo presente na história, um ponto interessante se destaca: ela habita, por diversas vezes, o próprio protagonista. É fácil encontrar uma lista imensa de protagonistas proeminentes e dotados de bondade que, se falham, é sempre na melhor das intenções. Mas e quando a pessoa tem seu senso de prioridade um tanto quanto equivocado no trato do seu próprio poder? São pontos que Gavião precisará descobrir e, muitas vezes, por sua própria imprudência, por conta própria.
Por causa disso, Gavião passa por dificuldades, provações e algumas aventuras. Entender o que são limites a alguém ou a um poder, entender o que é realmente importante para si. E, especialmente, compreender a importância do equilíbrio para o mundo e as pessoas. Compreender que paciência é também uma nobre virtude.
Maturidade é paciência. Maestria é paciência multiplicada por nove.
Além disso, a amizade é elemento presente de forma muito significativa na história, ainda que Gavião passe por alguns períodos solitários. A amizade, aqui, carrega consigo o lembrete de que mesmo as tarefas mais árduas que cabem apenas a nós desempenhar, são mais leves quando um amigo caminha conosco.
A magia em Terramar
Outra maravilha que O Feiticeiro de Terramar nos apresenta é o próprio conceito de magia, de mágica, de feitiçaria. Existem aqueles com muito ou pouco poder, aqueles que sabem uma ou outra coisa. E, de outro lado, aqueles que tomam o caminho do conhecimento, como Gavião, e estudam. Esse é um paralelo muito interessante de ser observado e, especialmente, de ver seu desenrolar na história a medida que Gavião começa a ter contato com outras culturas, povos e lugares.
Além disso, o ponto-chave da mágica que se realiza se dá através de um ponto que diz muito sobre a prática real de bruxaria/wicca, que é o poder dos nomes. A principal forma de fazer feitiços e outras mágicas na história é através dos nomes das coisas. O nome de cada coisa, de cada ser é poderoso e é o que permite aos feiticeiros controlá-los e alterá-los. Para quem não conhece, na prática wicca o nome é um elemento que deve ser respeitado e, por muito tempo, acreditava-se que saber o nome de alguém lhe daria poder sobre essa pessoa. (Se quiser saber mais, sugiro a leitura de O Livro Completo de Bruxaria de Raymond Buckland)
Vi e nomeei Terramar e todas as suas ilhas. Não sabia quase nada sobre elas, mas sabia seus nomes. A mágica reside no nome.
ursula k. le guin (posfácio)
Chegar a última página é imaginar que é impossível que o deslumbramento por essa história cresça ainda mais. Mas o Posfácio da autora, presente na edição lindíssima da Morro Branco, relançado agora em 2022, lembra o velho ditado: nunca diga nunca.
As palavras de Ursula
Falando sobre a época em que O Feiticeiro de Terramar foi lançado, ela nos dá alguns fatos importantes, como a presença marcante de bruxos velhos de chapéus pontudos na literatura juvenil da época, 1967. Mas Ursula não escreveria sobre eles, e sua história era destinada ao público jovem. Então ela logo pensou que, se havia um mago velho, ele deve ter sido jovem em algum momento. Nasceria assim a base sobre a qual seria construído o Ciclo Terramar.
Além disso, a autora chama atenção a alguns fatores subversivos que ela trouxe de maneira sutil para a trama, como o fato de Gavião ser um homem de pele marrom no meio da exclusividade de heróis brancos da época. Ela também destaca o papel das mulheres e povos negros nessas histórias, comumente associados a poderes ruins, ao lado das trevas.
Junto a isso, ela destaca a ênfase exacerbada que a guerra exerce nas histórias do gênero, uma das heranças arturianas. E indo mais fundo no tema, demonstra como a guerra em si já é um fator divisor entre bem e mal, lados sendo ditados detentores do poder.
Todos esses aspectos ficam claros durante a leitura e a habilidade de Ursula refletiu não apenas em aspectos que condizem com suas crenças, mas também em uma obra atemporal, capaz de reunir a tradição das histórias fantásticas à uma originalidade ímpar.
Seja você estudante de feitiçaria ou um Grande Feiticeiro, a recomendação é a mesma: leia O Feiticeiro de Terramar.
A noção de que fantasia é apenas para pessoas jovens surge de uma incompreensão teimosa sobre maturidade e imaginação.
urusla k. le guin
Você não vai apenas descobrir um mundo incrível, mas uma história tão repleta de nuances que, a cada vez que olhar para ela, uma nova faceta será revelada.
Aleatoriedades
O Feiticeiro de Terramar
Ciclo Terramar – Volume 1
- Título original:
- Autoria:
- Ursula K. Le Guin
- Autoria:
- Tradução Heci Regina Candiani
- Editora:
- Morro Branco
- ISBN:
- 978-6586015423
- Ano de lançamento:
- 2022
- Gênero:
- Ficção Estrangeira | Fantasia Juvenil | Aventura
- Páginas (nº):
- 208
Terramar é um mundo mágico quase inexplorado, formado por centenas de ilhas que apresentam, cada uma à sua maneira, vislumbres de poder e mistérios. Magos, bruxas e criaturas míticas povoam esse extraordinário arquipélago.
Em O feiticeiro de Terramar, primeiro volume da saga, acompanhamos Ged, um jovem feiticeiro que busca descobrir seu caminho em meio às incertezas e às imprudências da juventude. À medida que a magnitude de seu poder é revelada, a harmonia do mundo e as leis da magia são colocadas à prova: nenhum homem deve alterar o equilíbrio entre a vida e a morte.
Agora, o feiticeiro precisa iniciar a jornada que o apresentará às grandiosas palavras de poder, o fará encarar dragões ancestrais, navegar por mares desconhecidos e atravessar os portões da morte, para enfrentar a sombria criatura que ameaça não só Ged e Terramar, mas os tênues limites entre luz e escuridão.
Aclamada como uma das melhores séries de fantasia de todos os tempos e ganhadora dos principais prêmios, como Locus e Hugo, a obra de Ursula K. Le Guin, que se tornou referência e inspiração para a literatura fantástica mundial, chega agora em versão definitiva com ilustrações do inigualável Charles Vess.
Para quem curte aventuras incríveis, duas fantasias para conhecer: Mirta Vento Amarelo de André Regal e Elemental de Bianca Hubbert.