O clássico Um Cântico de Natal, de Charles Dickens é uma das histórias natalinas mais conhecidas no mundo. É difícil que alguém nunca tenha lido ou assistido sequer a uma de suas muitas adaptações e versões. Ou que saiba, ao menos, o que é o enredo clássico da visita dos fantasmas dos Natais passado, presente e futuro.
Talvez o título da edição da Martin Claret gere estranheza à primeira vista, já que o conto de Dickens é costumeiramente traduzido como Um Conto de Natal. Mas vale lembrar que a versão adotada pela editora se mostra mais fiel ao título original do conto: A Christmas Carol.
Detalhes à parte, essa é uma leitura perfeita para se fazer em clima de Natal, como o fiz, mas, ainda assim, é do tipo que carrega ensinamentos que são extensíveis para a vida. Sem dúvidas, não apenas para uma época em que nossos corações são mais facilmente abrandados pelo chamado espírito natalino.
Um Cântico de Natal: a história de Ebenezer Scrooge
Em Um Cântico de Natal conheceremos Ebenezer Scrooge, um homem avarento, ranzinza e rude que acredita fielmente que o Natal é uma perda de tempo. E pior do que isso, o Natal é sem dúvidas perda de dinheiro! Ele não consegue acreditar como as pessoas desejam folga do trabalho nesse dia, gastar com refeições absurdas, dar presentes? E por qual razão fariam tal coisa? Não há melhor descrição para Scrooge do que a que o próprio Dickens faz, ressaltando como a aparência dele demonstrava sua dureza interior:
“Mas como era mão de vaca nos negócios esse Scrooge! Um velho e ganancioso pecador que sabia espremer, arrancar, agarrar, apertar! Duro e agudo como uma ponta de sílex do qual nenhum aço jamais houvesse tirado o fogo generoso; dissimulado, reservado e solitário como uma ostra. Congelou o frio interior suas velhas feições, danificou-lhe o nariz pontudo, encarquilhou-lhe as faces, enrijeceu-lhe o andar; tornou vermelhos os seus olhos e azuis o seus lábios finos; e o mesmo frio falava com astúcia em sua voz rouca. A geado cobria-lhe a cabeça, as sobrancelhas e o queijo rijo. Levava ele sua baixa temperatura por toda parte; congelava o escritório nos dias mais quentes do verão, e não o descongelava nem por um só grau no Natal.”
Ainda assim, as coisas seguem muito bem para ele, já que seu empregado sobrevive com um salário sofrível e péssimas condições de trabalho. Até que Scrooge recebe a visita de seu antigo sócio, Jacob Marley, já falecido, que lhe dá um aviso: Ebenezer receberá a visita de três espíritos do Natal, o do passado, o do presente e o do futuro.
“É obrigação de todo homem que o espírito que traz dentro de si passeie entre os seus semelhantes, em longas viagens; e se esse espírito não o fizer durante a vida, é condenado a fazê-lo depois de morto. É condenado a vagar pelo mundo – ah! que desgraçado sou! – e testemunhar o que já não pode usufruir, mas teria podido enquanto vivo, para sua própria felicidade!”
Apesar de não perceber, Scrooge está recebendo uma chance, uma pela qual ele nunca pediu, mas uma que traz a semente da transformação. Isso porque cada uma das visitas mostrará os erros que ele cometera no passado, os que comete no presente e também aqueles os quais ele irá cometer, se continuar a viver da maneira como vive.
Aqui, entra uma parte importante da jornada de Scrooge: a que fala de autoconhecimento, de entender suas próprias dores e porque as transformamos em carapuças para manter os outros afastados. Mesmo o homem mais detestável, tal qual Scrooge, tem uma história para contar. E, ainda que pormenores não sejam detalhados na trama, entendemos seu fechamento para o mundo.
Também por essa razão, Um Cântico de Natal é o tipo de leitura que te leva através do tempo. Não apenas em relação as três viagens no tempo que o Scrooge faz, mas também direto para a Londres vitoriana, quase inventada por Dickens, ao mesmo tempo que ela o inventava, como destaca Sandra Sirangelo Maggio, responsável pela Apresentação da edição da Martin Claret.
E não apenas isso, uma viagem que faz entender como Dickens conseguiu construir a imagem do do Natal, do espírito de Natal, tal a qual temos nos dias de hoje. Nas palavras de Fred, sobrinho de Scrooge:
“[…] sempre tenho pensado no Natal, quando ele chega – além da veneração devida ao seu sagrado nome e origem, se é que alguma coisa nele pode estar além disso -, como um tempo bom: um tempo de delicadeza, de perdão, de caridade e de alegria: o único tempo do calendário, que eu saiba, no ano todo, em que os homens e as mulheres parecem, num consentimento unânime, abrir livremente seus corações e pensar nas pessoas de condição mais modesta como se fossem companheiros de viagem até o túmulo, e não outra raça de criaturas que trilham outros itinerários.”
Toda essa grandiosidade, que rendeu reconhecimento ao autor ainda em vida, tanto em termos de público quanto da crítica, está em outros elementos que são incrivelmente perceptíveis na construção de Scrooge e de toda a história de Um Cântico de Natal: se trata da complexidade que é ser humano e da complexidade que é um ser humano. No conto, tanto através de Scrooge, quanto através de suas relações com os outros, até na solidão que ele vive de modo resignado, a dualidade e as contradições de uma pessoa se tornam aparentes e quase tangíveis.
Pode até parecer muito para caber em um único conto, tanto quanto a transformação que se propõe dar ao protagonista, mas, em termos óbvios, a experiência de Scrooge é como um tratamento de choque. Cada espírito que aparece lhe dá uma descarga de realidade, uma verdadeira bofetada que lhe pergunta: você parou para realmente pensar sobre essas coisas?
Para além do próprio Scrooge, o conto nos presenteia com algumas histórias paralelas, como o do seu funcionário, Bob Cratchit e seu sobrinho, Fred. Em especial, quando o assunto é Bob, com toda sua família apresentada, acabamos não apenas por nos afeiçoar, mas por desejar poder intervir em sua realidade precária. Quando o assunto é Fred, ele a todo tempo demonstra gentileza sem igual ao tio que sempre o renega, e é como o lembrete de que uma vida com companhia, amizade, alegria e bondade estava completamente ao alcance de Scrooge.
“Os itinerários dos homens prenunciam certos destinos aos quais, se palmilhados até o fim, devem chegar. Mas se se afastarem desses percursos, os destinos mudarão.”
Seja época de Natal ou seja um momento que você precise se lembrar de que sim, podemos ser melhores e conviver com nossas dualidades durante as dificuldades e alegrias da vida e de nossa própria época, Um Cântico de Natal é uma história mais do que recomendada. É necessária para quem quer fazer as pazes consigo e trilhar caminhos melhores, ainda que três espíritos não tenham batido à sua porta.
Sobre a Edição e Um Cântico de Natal da Martin Claret
A edição da Martin Claret conta com capa dura, acabamento metalizado (acho a arte dessa capa maravilhosa) e folha de guarda decorada. As ilustrações são de Hablot K. Browne, John Leech, J. Tenniel, C. Stanfield, RA; e F. Stone.
Além disso, conta com a já citada Apresentação de Sandra Sirangelo Maggio, professora de literatura de língua inglesa na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Para além do conto Um Cântico de Natal, a edição traz também as seguintes histórias:
- Festas de Natal;
- A História dos Duendes que Raptaram um Coveiro;
- Um Episódio de Natal de O Relógio do Senhor Humphrey;
- O Homem Possesso e o Pacto com o Fantasma;
- Uma Árvore de Natal;
- O Que é o Natal Quando Ficamos Velhos;
- Os Sete Viajantes Pobres.
Por último mas não menos importante, conheça algumas história natalinas:
O Natal de Poirot, para quem gosta de investigações, com a Rainha do Crime, Agatha Christie
Meu conto de Natal, Bem-vindo ao Clã Nicolau, disponível na Amazon.
- Autoria:
- Charles Dickens
- Autoria:
- Tradução Roberto Leal Ferreira
- ISBN:
- 9788544002285
- Ano de lançamento:
- 2019
- Editora:
- Martin Claret
- Páginas (nº):
- 328
- Gênero:
- Conto | Fciação | Literatura Inglesa Clássica