Uma família de luto vivendo em casa isolada, numa Terra Faminta no novo livro de Andrew Michael Hurley. Você precisa tomar cuidado, nem tudo é o que parece. Às vezes, as coisas mais sinistras podem ser reais e elas podem inclusive, morar com você. Acenda uma vela e venha conhecer o terror fantasioso que encontra o drama familiar dos Willoughby.
Terra Faminta (Starve Acre)
Andrew Michael Hurley
Tradução André Czarnobai
Intrínseca | 2021 | 240p.
Disponível em Amazon
“Não tem sequer um centímetro do solo que ainda esteja vivo.
Segundo o folclore que circulava na região, a represália divina não tinha se resumido à árvore; se espalhara pelo chão numa onda venenosa que escureceu a grama, infiltrando-se no solo, sufocando toda a vida que havia ali.”
Sobre Andrew Michael Hurley
Andrew Michael Hurley é autor de duas coletâneas de contos publicadas no Reino Unido e Loney é seu primeiro romance. Lançado originalmente em edição limitada – apenas trezentos exemplares -, o livro rompeu as fronteiras do mercado independente, recebeu resenhas elogiosas de todos os principais veículos de imprensa, conquistou o grande público e arrebatou o júri do prestigioso Costa Book Awards, rendendo a Andrew Michael Hurley o prêmio de melhor autor estreante de 2015. O autor mora em Lancashire, Inglaterra, onde leciona literatura inglesa e escrita criativa.
Sinopse de Terra Faminta
Quando o filho de cinco anos de Juliette e Richard morre de repente após cometer uma série de atos inexplicáveis de violência — instigado, segundo ele, por uma voz misteriosa —, o mundo dos dois desmorona. Seis meses depois, Juliette se recusa a sair de casa e passa os dias fazendo gravações no quarto do filho, esperando conseguir provas de que ele continua lá. Enquanto isso, Richard tenta ao máximo não pensar no menino e volta a atenção para o terreno do outro lado da rua, o qual escava pacientemente, em busca de fragmentos de um carvalho lendário.
Assombrados por um presente doloroso e uma expectativa interrompida de futuro, os dois são confrontados pela estranheza e pela solidão de um lugar agora tomado pelo sofrimento. De um lado, o luto deixa cada vez mais clara a distância que os separa; de outro, eles buscam desesperadamente uma ponta de esperança — apenas para desenterrar um profundo terror.
Com a incrível habilidade de criar um mundo definido pelo bizarro, em Terra faminta Andrew Michael Hurley entrelaça com perfeição a selvageria da natureza e descrições capazes de evocar horror. Nesta narrativa inquietante, o sobrenatural e a vida cotidiana se confundem, criando um retrato assustador do que acontece no limiar entre a dor e a sanidade. A obra chega ao Brasil em edição de luxo, com ilustrações exclusivas do artista alagoano Midrusa e capa dura.
Terra Faminta
A família Willoughby está de luto pelo pequeno Ewan. O filho de 5 anos de Richard e Juliette morreu inesperadamente há alguns meses. Antes disso, Ewan vinha cometendo uma série de atos violentos, algo totalmente fora da normalidade para uma criança que sempre fora doce, mas ele dizia que fazia o que a voz o mandava. Agora tudo que há na vida dos Willoughby é uma casa grande e isolada demais, vazia demais, assim como eles.
“Se ele tinha de estar ausente, por que não podia simplesmente permanecer assim? Um vazio é uma coisa com a qual se pode lidar, da mesma forma como um homem pode se acostumar a ficar sem uma das mãos ou um dos pés e improvisar uma maneira de viver até que aquilo se torne um hábito, e então uma espécie de normalidade.”
Richard já não se empenha tanto em fazer com que a esposa deixe de lado a ideia de que está ouvindo seu filho, como se ele ainda estivesse, de alguma forma, perambulando pela casa e pelo terreno. O foco dele é nas escavações para encontrar o Carvalho de Stythwaite, uma árvore de proporções homéricas que ficava em algum lugar do campo que rodeia sua propriedade. Seu filho chegou a dizer que já vira o Carvalho. Uma árvore que simplesmente não existe mais.
“Não tem sequer um centímetro do solo que ainda esteja vivo.
Segundo o folclore que circulava na região, a represália divina não tinha se resumido à árvore; se espalhara pelo chão numa onda venenosa que escureceu a grama, infiltrando-se no solo, sufocando toda a vida que havia ali.”
Segundo o folclore da cidade de Stythwaite, Jack Grey perambula pela floresta, e seu nome é sinônimo de algo ruim. Ninguém se lembra ao certo o que sua figura significa, mas nem mesmo o ceticismo de Richard pode negar o fato de que aquela terra é inóspita, nada com vida cresce por lá.
“Richard havia aprendido com seu pai, muito tempo antes, que a opinião de Stythwaite não valia nada. Certamente não era algo que você deveria perder seu tempo combatendo. Se fosse deixada quieta, sem que ninguém a alimentasse com preocupações, ela devoraria a si própria como um ouroboros e acabaria morrendo.”
O detalhe é que enquanto Richard cava a terra ao redor de sua casa, não são apenas poças de lama que vão surgir. Uma maré muito maior que o rígido inverno presente, está se aproximando. Algo que nenhum deles jamais imaginou ser possível, algo que desafia qualquer crença.
“O que você procura e o que você acha nem sempre são a mesma coisa.”
Terra Faminta foi devorado. Quero dizer, o livro ainda está intacto, mas pode ser classificado como uma leitura feita de uma só vez. Numa noite, comecei e terminei. A fluidez da narrativa de Andrew Michael Hurley se fez presente e me conduziu como quem quer me contar um segredo. E posso dizer que sim, ele contou e não, ele não contou.
“Não fazia sentido preservar os pertences do menino como se fossem artefatos de um museu. Tudo – cada um de seus brinquedos e cada peça de roupa – deveria ser jogado na correnteza do tempo para que seu fluxo o levasse para longe. Os desenhos nas paredes deviam ser cobertos com tinta branca, as janelas precisavam ser limpas, e o quarto, preenchido pelos sons de uma nova criança. Não para esquecer Ewan – apenas para aceitar que ele não voltaria.”
A história e, talvez a capa, nos levem a crer ser uma história muito mais sombria e aterrorizante, com sustos por vir e sensações do tipo preciso checar embaixo da minha cama antes de dormir. Mas esse não é o terror de Terra Faminta ou o que o autor nos traz. Seu estilo faz lembrar uma novela bem mais que um romance, com um círculo de personagens reduzido, a trama centrada em um único mistério e até mesmo pelo tamanho do livro. São 240 páginas, mas ainda assim, a diagramação é bastante espaçada e a edição ainda conta com ilustrações de Midrusa. As ilustrações, inclusive, trazem um tom sombrio e são feitas ao estilo de xilogravuras, uma combinação com a história do livro que se encaixa como uma luva.
“No fim das contas, fosse aquilo um castigo ou simplesmente má sorte biológica, não fazia nenhuma diferença. Nenhuma conclusão parecia fazer sentido. Ninguém conseguia explicar o significado que a vida de Ewan deveria ter. Ele havia falecido antes de ser capaz de se tornar, conquistar ou realizar qualquer coisa. Parecia que só tinha vindo ao mundo para sugar todo o amor que havia neles e trocá-lo por sofrimento.”
O foco de Terra Faminta é, invariavelmente, o luto e as muitas formas de expressá-lo. Ao mesmo tempo, o uso de uma fantasia sombria para demonstrá-lo através de elementos como a figura de Jack Grey, crianças cometendo atos terríveis, pessoas perdendo a razão, vozes sussurradas ao vento, criaturas voltando a vida…, é interessante como o embate entre vida e morte e vida após a morte, é deslocado para a centralidade da trama. Uma exploração do luto, sem dúvidas, com, de um lado, o ceticismo de Richard, de outro, a necessidade de uma crença de Juliette.
“Para as pessoas, Richard achava, era difícil aceitar que um evento poderia ser completamente desprovido de bondade. Ninguém gosta de admitir que a maldade realmente existe.”
A ideia da história não é desvendar o mistério e explicar de que profundeza misteriosa um mal ou outro pode ter surgido. Sob um olhar frio, tudo pode ser explicado em termos racionais. Ou não. A questão é que ele brinca com o leitor, seguindo em terceira pessoa, mas sob o olhar de Richard, por vezes é difícil ter certeza de que ele é um narrador confiável. Ou, ainda que o seja, se seu ceticismo não chega ao ponto de ser um sistema de defesa.
“Procurar uma explicação para tudo aquilo lhe parecia ingrato. Havia uma benevolência extrema se manifestando ali, e ele sentiu que questionar aquela restauração talvez comprometesse a sua conclusão. Ele não estava confuso. Havia testemunhado tudo que acontecera, bem ali na sua frente. Ninguém estava lhe pedindo que acreditasse, apenas que observasse e prestasse atenção no que estava sendo mostrado. A primavera se aproximava. Logo, só existiria o novo.”
O olhar sobre a história é daqueles que desperta o pensamento para o peso da perda e, ao mesmo tempo, não deixa de lado os mistérios que a ciência ainda não é capaz de explicar e as coisas que desafiam a dicotomia de bem e mal. Talvez você vire a página e permaneça com uma ou outra dúvida, porque, no fim das contas, o que aconteceu, aconteceu. E suas conclusões são mais suas que dos personagens. Se há razão nesses acontecimentos ou em suas ideias, aí a história já é outra história. A recomendação fica para os desbravadores de mundos que não se importam em encerrar a página, mas não necessariamente, encerrar a história.
“Não existe nada mais remoto do que a mente de outra pessoa. Mesmo no seio de uma família, a comunicação se perde. Um pai tem as mesmas chances de conhecer profundamente seu filho que um estanho.”
Aleatoriedades
Terra Faminta foi recebido em parceria com a Editora Intrínseca. E um pequeno adendo, o livro me fez lembrar que preciso retomar a leitura de Loney, livro do mesmo autor, lançado em 2016, também pela Intrínseca. Faz tempo que tenho a edição (linda também, inclusive) e Terra Faminta, acabou por me relembrar a curiosidade em conhecer essa outra história.
As dicas de leitura levemente sombrias da vez são: Caixa de Pássaros de Josh Mallerman | Onde Cantam os Pássaros de Evie Wyld
Que a Força esteja com vocês!
xoxo
Angela Cunha
Primeira vez que consigo ver cada detalhe dessa edição assim, por dentro. E posso ser muito sincera? Eu amo tudo nas suas postagens, o ritual completo. Mas só aqui consigo puxar a tela do pc e ver os detalhes e você não imagina como isso faz a diferença na minha vida.
Até o fitilho fica mais lindo, as ilustrações, o tamanho da letra. Tudo, tudo me encanta!!!
Nunca poderei agradecer a você por isso. Tá, eu penso que é pra mim e assim será rs
O povo não andou gostando muito desse livro não. Sei lá onde viram confusão.
Sei que eu senti vontade demais de ler e ver essa coisa vermelha linda nas minhas mãos!!!
Beijo
Angela Cunha/O Vazio na flor