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Conto ♥ Sem Título

Quando parece mais simples, e ainda assim, incômodo.

Como chuva molhando as roupas do varal, como pés molhados dentro do sapato, como o trânsito parado, como interferência na rádio, ou como a ausência de sinal de internet. Como chiclete grudado na roupa. Como a culpa que não é sua. Como pernilongo durante a noite. Como arranhar as unhas no quadro negro. Como pessoas andando devagar na sua frente. Como o telefone chamando sem parar. Como ouvir as músicas na espera pelo atendimento do telemarketing. Como receber uma guardachuvada na rua. Como corte de papel. Como esse parágrafo: extenso. Parado. Repetitivo.

Ter que ter nos ombros o peso de tudo. Ter que ser mais de um, em um. Ter que ter mais de um, em um. Dar conta do recado, e de mais um pouco.

É quando me fecho no meu mundo, quando dou ouvidos apenas às melodias que surgem pelos auto-falantes, que entram pelo ouvido e ressoam pelas veias do corpo.

Como se a janela fosse mais que uma construção, mais que concreto, vidro e metal. Vai além do que os olhos podem ver. É o que a mente capta, o que o espírito sente, o que cada coração palpita e anseia.

Vejo uma das mãos se levantar com timidez. Mas aqui não nos importamos em tirar a timidez. Ela é tão bem vinda quanto o entusiasmo, porque também pode ser derramada no papel.

– Sim?

– E se houvesse alguém ali? – A garota que veste um coque no alto, pergunta.

– E por que acha que não há?

Ela sorri. E faço o mesmo.

– O que quero que pensem aqui é exatamente no que pode ser visto a olho nu e no que não pode. No reflexo que vemos ao parar em frente a esta janela. É apenas o embaçado do vidro? É a sujeira do lado de fora? É a cor do vidro, quem sabe? Ou seria a chuva lá fora?

Observo as mentes pensantes, cada qual entretida em seus próprios caminhos, em cada linha e cada trecho que compõem as sinapses que carregam pensamentos.

Vejo sorrisos, lágrimas. Vejo anseios e respostas. Mas o principal é que vejo as perguntas. Rabiscadas agora no papel, sentidas, escritas, jogadas, molhadas, suadas e derramadas.

– Há um problema nisso tudo. – A voz logo ao meu lado soa apenas no montante necessário para que eu a ouça.

– E qual seria o problema?

– Se tudo fosse um jogo de palavras, seria fácil, seriam estabelecidas regras e cada um jogaria. Com particularidades, mas… ainda assim qualquer um seria capaz. E a questão é que não há exatidão, não há fórmula, não há regras. E então, como se afastar da mediocridade? Como, de fato, escrever?

A testa franzida, as mãos apertadas na caneta. A página em branco.

– O problema não é ser um jogo, se todos jogassem, ainda que seguissem as regras, é impossível ter apenas vitoriosos.

A questão toda é dar-se, a cada palavra, a cada suspiro. A cada refrão da melodia que toca na cabeça mesmo sem música tocando do lado de fora. É como cantar mesmo sem saber a letra, andar de bicicleta pela primeira vez, é beijar sem nunca ter beijado antes. É fazer de si recipiente para depois despejar tudo. Que sintam as palavras, que sintam o medo e até os erros. Mas que sintam, que mostrem, que tentem. Que escrevam.

 

Conto inspirado pela imagem do post e pela palavra ‘jogo’, participando do desafio Imagem & Palavra do grupo Café com Blog. E, claro, a inspiração do enredo em si, veio das postagens arrasadoras do clube de escrita chamado Go, Writers. Dá para conhecer mais deles no Insta e no Site deles.

Que a Força esteja com vocês!

xoxo

p.s.: Não é publi post.

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  • Luly Lage

    Menina, o início desse conto, com as coisas simples e incômodas, foi o suficiente pra sentir o impacto. Minha ansiedade foi nas alturas, mas passou quando continuei lendo… Tenho medo de não ter conseguido absorver o resto do conto, de tão marcante que o início foi pra mim!

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    • Retipatia

      Oi Luly! Ah eu acho que se o início deu esse impacto todo, já é alguma coisa, o intuito era pensar no incômodo e, se até incomodou, tô chegando lá! ehehe E que bom que acalmou quando a leitura continuou, porque a ideia não era permanecer incomodada, afinal de contas… rs <3

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