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Dez dias em um hospício ♥ Nellie Bly

Resenha do livro de não-ficção Dez dias em um hospício de Nellie Bly publicado pela Editora Wish em 2020.

Já imaginou passar dez dias em um hospício? Ou melhor, já imaginou isso no século XIX, após passar por um breve processo que declara você clinicamente insano, com base na sua pulsação, na dilatação da sua pupila e no fato de algumas pessoas te acharem estranhe? Bem, você precisa conhecer a jornada de Nellie Bly.

Dez dias em um hospício (Ten days in a mad-house)
Nellie Bly
Tradução de Karine Ribeiro
Editora Wish |2020 | 192 p.
Disponível em Loja Wish (cupom RETIPATIA5)
“O Hospício da Ilha Blackwell é uma ratoeira humana. É fácil entrar, mas uma vez lá é impossível sair.”
Resenha do livro de não-ficção Dez dias em um hospício de Nellie Bly publicado pela Editora Wish em 2020.
Sobre Nellie Bly

Elizabeth Jane Cochran nasceu no dia 5 de maio de 1864 e, apesar dos tempos difíceis após a morte do pai, não desistiu de estudar e se matriculou na Indiana Normal School. Precisou desistir dos estudos para sustentar a família e quando viu um anúncio no jornal Pittsburg Dispath, que limitava o papel feminino aos cuidados do lar, ela escreveu uma carta ao editor-chefe mostrando sua ótica feminina. Assim, ela foi convidada a escrever seu primeiro artigo para o jornal, sendo depois contratada como colunista e ganhando o pseudônimo de Nellie Bly.

A partir daí, Nelly se envolveu mais com a escrita e trabalhou em prol de vários temas, como condições de trabalho para as mulheres e o voto feminino, cobrindo inclusive, A Parada Sufragista de 1913. Sua vida inspirou vários filmes e documentários, como The Adventures of Nellie Bly (1981) e a personagem Lana Winters do seriado American Horror Story: Asylum (2012). (Biografia completa no livro, por Joici Rodrigues)

Resenha do livro de não-ficção Dez dias em um hospício de Nellie Bly publicado pela Editora Wish em 2020.
Sinopse de Dez dias em um hospício

Nellie Bly foi uma corajosa jornalista que aceitou o trabalho desafiador de internar-se em um hospital psiquiátrico em 1887. Seu objetivo era entender e relatar as torturas e descasos que ocorriam entre enfermeiros, médicos e pacientes, assim como o processo de triagem das próximas internações.

Bly descreve que nem todos os pacientes realmente precisavam de cuidados mentais hospitalares, mas todos, sem exceção, eram tratados de forma desumana. A saída? Provar-se mentalmente são. Uma tarefa difícil para qualquer pessoa com o emocional abalado pelo medo.

Dez dias em um hospício
Dez dias em um hospício não é uma ficção, trata-se de uma história verídica, narrada por uma jornalista e contém relatos de violência, opressão, abuso físico e mental.

Adentrar as páginas de Dez dias em um hospício é como viajar no tempo. Mas não uma daquelas viagens alucinantes, que nos deixam vidrados com o mundo a descobrir. Isso porque a viagem nos leva até o século XIX e, especificadamente, numa época em que ser considerado louco, insano, doido, etc. não significava ter uma condição mental. E sim, ser menos humano que o resto das pessoas.

Nellie Bly é uma jornalista que se desafiava sempre para escrever temas importantes e, especialmente, defender os direitos das mulheres, suas condições de trabalho digna e como papel importante da sociedade. Em setembro de 1887, o World, jornal o qual ela trabalhava, perguntou se ela conseguiria ser internada em um hospício de Nova York, para que pudesse escrever uma narrativa sobre o tratamento dado aos pacientes. Nellie aceitou.

“Não achava possível que tal instituição pudesse ser mal administrada e que crueldades existissem sob seu teto. Sempre tive o desejo de conhecer a vida no hospício com mais detalhes – um desejo de ser convencida de que as mais desamparadas criaturas de Deus, os insanos, eram tratadas com gentileza e decência. Considerava exageradas ou fictícias as muitas histórias que havia lido sobre abuso nessas instituições, mas ainda tinha o desejo latente de saber a verdade.”

Mesmo que pareça o enredo de um filme, acredite, esse é o relato de Nellie Bly sobre sua internação no Hospício da Ilha de Blackwell. Aproveito para destacar que, vários termos como hospício, louco, doido, são considerados pejorativos atualmente. Contudo, os termos não eram vistos da mesma forma em 1887 e Nellie faz uso de vários deles, com frequência, ainda que se note uma preocupação dela em ser amável com a condições das pacientes. Já a tradução do livro seguiu os termos usados pela jornalista, mantendo o texto fidedigno com sua época.

Resenha do livro de não-ficção Dez dias em um hospício de Nellie Bly publicado pela Editora Wish em 2020.

Por causa de sua descrição de todo o plano para entrar no Hospício da Ilha de Blackwell, Nellie Bly consegue mostrar a situação como um todo e, especialmente, já nos choca com a absurda facilidade com que ela é condenada à viver no hospício por profissionais da saúde, dito especialistas.

“Insanidade atestada. Considero um caso sem solução. Ela precisa estar num lugar onde alguém possa cuidar dela. E assim passei por meu segundo médico especialista.”

Em outras palavras, é possível ver isso reverberar no mundo de hoje quando se vê várias mulheres sendo condenadas à viver no hospício por ser incômoda, por enraivecer-se, adoecer e até mesmo estar em situação de necessidade, de amparo. O Hospício da Ilha de Blackwell é, na verdade, um depósito de mulheres indesejáveis.

“Como podem dizer que sou louca, simplesmente porque deixei a raiva tomar conta de mim?”
Resenha do livro de não-ficção Dez dias em um hospício de Nellie Bly publicado pela Editora Wish em 2020.

E quando falo em depósito, é para se imaginar um lugar inóspito coberto de sujeira, de frio, sem presença reconfortante ou calor. Estes são apenas alguns dos problemas pelos quais as pacientes estão sujeitas. Falta de roupas adequadas para o frio local, total ausência de atividades a serem feitas, tendo de passar o dia inteiro sentadas em bancos de madeira, caladas e imóveis. Banhos gelados em bacias com a mesma água e toalha para todas as pacientes. Comidas intragáveis, poucas e bolorentas.

“O que, exceto a tortura, produziria insanidade mais rápido que esse tratamento? Aqui está um grupo de mulheres enviadas para serem curadas. Eu gostaria que os médicos especialistas me condenando por minha ação, a qual provou a capacidade deles, pegassem uma mulher perfeitamente sã e saudável, trancafiassem-na e a fizessem ficar sentada das 6 às 20 horas em bancos retos, não permitissem conversar ou se mexer durante essas horas, não desse a ela nada para ler e não a deixassem saber nada do mundo ou o que ocorre lá fora, dessem a ela comida ruim e tratamento severo, e observassem quanto tempo levaria para deixá-la louca. Dois meses a tornariam uma ruína, mental e fisicamente.”

Além das condições desumanas, some-se a isso às violências sofridas pelas pacientes. São tratadas como seres inferiores, como sacos de pancada. As enfermeiras, em sua maioria, causam desde violências psicológicas às pacientes até severas agressões, como asfixiamento e pancadas na cabeça. Ao mesmo tempo, exigem gratidão das pacientes, afinal, em um serviço público, não há que se fazer queixas e exigências.

“Você está em uma instituição pública agora e não pode esperar ganhar nada. Isso aqui é caridade, e você deve ser grata pelo que recebe.”

No mesmo patamar encontra-se a cegueira dos médicos, inadmissível, já que estavam em contato frequente com as pacientes e eximiam-se de culpa ao falar de esquemas das enfermeiras para que não descobrissem. Ao mesmo tempo em que diminuíam os relatos das pacientes à sandices.

“Era inútil reclamar com os médicos, pois eles sempre diziam que era uma fantasia de nossa mente doente e, além disso, levaríamos outra surra por contar. Elas mantinham as pacientes debaixo d’água e ameaçavam deixá-las morrer lá, se não prometessem não contar aos médicos. Todas nós prometíamos, porque sabíamos que os médicos não nos ajudariam e faríamos qualquer coisa para escapar da punição.”

Em se tratando do corpo médico, esse faz parte, inclusive, do processo irregular, falho, injusto e com falta de profissionalismo para determinar o encarceramento das mulheres no hospício. O trajeto de Nellie mostra isso com extrema e preocupante detalhamento: após incomodar algumas mulheres de um abrigo para trabalhadoras durante uma noite, é levada pela polícia até o tribunal. O juiz a avalia e acredita que é um caso para internação. Logo após um médico “especialista” a avalia e entende que sim, é um caso de loucura. E isso se sucede pelos próximos profissionais aos quais ela passa. Uma mulher sã, sadia, que facilmente enganou diversos profissionais.

“Sentei-me do lado de fora da porta e esperei ouvir como ele testaria a sanidade das outras pacientes. Com pouca variação, o exame foi exatamente o mesmo que o meu. Todas as pacientes foram questionadas se viram rostos na parede, se ouviram vozes e o que essas vozes disseram. Também posso acrescentar que todas negaram esses tipos peculiares de visão e audição.”

Isso revela não apenas a fragilidade do sistema, mas também a ausência e ignorância de conhecimentos teóricos e práticos aprofundados sobre as questões dos transtornos da mente humana. Um desconhecimento que cobrou caro, quase sempre a vida das pacientes ao longo de décadas.

“Quando passei por um pavilhão baixo, onde uma multidão de loucas indefesas estava confinada, li um lema na parede: ‘Enquanto eu viver, terei esperança’. O absurdo disso me atingiu com força. Gostaria de colocar acima dos portões que se abrem para o hospício: ‘Quem entra aqui deixa a esperança para trás’.”

A ideia dessa cobrança grande e injusta traz à frente um debate importante ao qual Nellie Bly joga no seu texto para reflexão, quando cita o caso de uma mulher estrangeira que, em falta de intérprete, sequer sabia pelo que estava sendo condenada e para onde seria enviada. Quem dirá, que seria uma pena perpétua. Mas até mesmo os criminosos têm direito à recursos, defesa e apelações, porque as pacientes passam sob um crivo definitivo?

“Assim, a Sra. Louise Schanz foi internada no hospício sem chance de se fazer entender. Será que existe desculpa para esse descuido, pergunto-me, quando é tão fácil conseguir um intérprete? Se o confinamento durasse apenas alguns dias, alguém poderia questionar a necessidade. Mas lá estava uma mulher, levada sem o seu consentimento, de um mundo livre para um hospício, sem a chance de provar sua sanidade. Provavelmente confinada pelo resto da vida atrás das grades do hospício, sem sequer ser informada em sua língua por que e para quê. Compare isso com um criminoso que recebe todas as chances de provar sua inocência.”
Resenha do livro de não-ficção Dez dias em um hospício de Nellie Bly publicado pela Editora Wish em 2020.

Os debates que a história de Nellie Bly são muitos, dolorosos e desumanos. Além disso, são carregados de terror ao saber que esta era a situação de apenas um dos locais, de apenas uma pequena parcela das mulheres que por lá passaram. Quantas mais almas foram condenadas àquela penúria? Quantas ainda sofreriam naquele e em outros locais ao longo dos tempos?

“Eu esperava ansiosamente deixar aquele lugar horrível, mas quando minha libertação veio e eu soube que a luz do sol de Deus voltaria a estar disponível para mim, houve certa dor ao sair. Por dez dias, fui uma delas. É tolice, mas parecia intensamente egoísta deixá-las sofrer.”
Extras da Edição de Dez dias em um hospício da Editora Wish

Ainda que alguns possam pensar que o intento de Nellie Bly ao passar Dez dias em um hospício tenha sido experiência suficiente para uma vida, a jornalista se mostrou ser alguém perspicaz, capaz de perseguir a verdade mesmo diante de situações extremas, em várias outras oportunidades.

Na edição da Editora Wish, estão presentes alguns textos complementares, como a Biografia de Nelly Bly feita por Joici Rodrigues e a Galeria Blackwell’s Island Asylum. Bem como dois esboços de artigos em que o foco são as condições de trabalho das mulheres: um deles em que ela tenta se tornar uma serviçal e outro em que ela se voluntaria para trabalhar numa fábrica de caixas, mesmo sem remuneração, sob a escusa de aprender o ofício.

“As esperas são longas. Uma garota estava lá há dois meses, outras por dias e semanas. Era bom ver o olhar alegre quando chamadas para ver uma dama e triste vê-las voltar dizendo que não se encaixavam porque usavam franja ou cabelos no estilo errado, ou pareciam irritáveis, ou eram muito altas, muito baixas, muito pesadas ou muito esbeltas. Uma pobre mulher não conseguiu um lugar porque estava de luto, e assim as objeções continuaram.”

Ainda que sejam narrativas mais curtas e até frustradas, servem como retrato das condições da época, das exigências absurdas, baixos salários e condições abusivas. Relatos que ajudam a mostrar e compreender as heranças culturais ainda presentes hoje no sistema de divisão de classes e na discriminação entre homens e mulheres.

“Observei as pacientes se levantarem e olharem saudosas para a cidade em que provavelmente nunca mais voltariam a entrar. Significa liberdade e vida parece tão próxima e, no entanto, o céu não está mais longe do inferno.”
Aleatoriedades

Antes de mais nada, recebi a edição de Dez dias em um hospício, que tem capa dura e diagramação com ilustrações incríveis, em parceria com a Editora Wish. Obrigada!

Já que estou falando sobre a medicina em séculos passados, uma boa dica para ampliar os conhecimentos é a leitura de Medicina dos Horrores de Lindsey Fitzharris.

Que a Força esteja com vocês!

xoxo

Retipatia
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  • TATIANE DE ARAUJO SILVA

    Eu não sabia que era um relato verídico, o que deve tornar ainda mais angustiante tudo que ela vivenciou, me fez lembrar do hospício de Barbacena (senão me engano) que foi denunciado aqui no Brasil que relata diversos abusos e nem faz tanto tempo assim, imagino naquela época. A wish mais uma vez arrasou na edição do livro

    responder
    • Retipatia

      Oi Tatiane!
      Sim, o livro não é ficção, eu também me espantei durante a leitura, ainda que o tema seja mais falado hoje, a gente não deixa de se chocar. Fiquei querendo ler mais do tema e a situação no Brasil também me fez lembrar do hospital em Barbacena. Quero ler Holocausto Brasileiro, fala exatamente sobre esse caso.
      A Wish é puro primor! <3
      Obrigada pela visita!
      xoxo

      responder
  • Angela Cunha

    Era essa resenha que faltava rs
    Eu me surpreendi demais ao saber que isso é relato real, vivido mesmo. Fora o trabalho magnífico da Editora, há todo o sentimento envolvido.
    Minha irmã é enfermeira em um hospital psiquiátrico há anos e antes da pandemia(quando ela podia vir pra casa da minha mãe) ela relatava cada história que a gente chorava.
    Ela ama cada menino(a) dela, é assim que ela os chama e nessa pandemia que ela perdeu muitos ali dentro pra doença, ela sofreu horrores.
    Preciso desse livro pra ontem!!!!
    Ah, suas fotos me fazem feliz!!!Muito feliz!!!
    Beijo

    Angela Cunha/O Vazio na Flor

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