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Conto ♥ Sem Controle

Encho a caneca até a borda com o café fumegante. O próprio cheiro já começa a ter o efeito desejado de me despertar. Os clarões dos relâmpagos iluminam o céu do lado de fora e a tempestade castiga tudo sobre o que cai. Já passam das quatro e meu prazo está findando, o que indica que não tenho tempo a perder, muito menos observando a chuva.

Volto para o computador e depois de dois longos goles do líquido escuro e precioso, as palavras voltam a ter foco. Continuo a leitura dos parágrafos extensos – extensos demais –  e sigo fazendo as marcações.

Todo o texto é inútil, mais uma obra fantasiosa com personagens perfeitos e lugares perfeitamente surreais. Nada surpreende, tudo se resume à um aparente colapso que fará com que algumas estruturas sejam abaladas. Nada que um fim meloso não conserte. Alguns podem até se perder no caminho, mas, no fim, a esperança sempre prevalece.

Como se a vida real fosse assim. Penso no tipo de pessoa que lê este tipo de obra por entretenimento e que realmente aprecie. Será uma fuga da realidade tosca que tem de vivenciar dia após dia, como se a esperança de uma falsa realidade fosse apaziguar seus problemas e decepções?

Olho no canto do arquivo, faltam apenas duas páginas. Não consigo evitar dar graças mesmo não acreditando em divindades.

Mais um longo gole e a caneca está quase vazia. Mas acho que consigo segurar até finalizar, tenho que fazer o envio até as oito da manhã, o que me dá uma janela de pouco mais de três horas. É tempo mais que suficiente.

Um relâmpago cruza o céu e ilumina quase todo o escritório e, simultaneamente, o estrondo do raio é ensurdecedor. Então, tudo é breu. No susto, derrubo a caneca de café e dou sorte que o líquido era pouco demais para chegar até o computador.

Meu notebook se apaga, as luzes, a luminária. Tudo desligado.

– Não, não, não, não…

Retiro o cabo de energia que estava conectado à máquina e aperto o botão de ligar. Nenhuma luz se acende, nenhum barulho de suas engrenagens funcionando. “Mas que maldita merda!”.

Pego o telefone e começo a discar, para então perceber que a linha também está muda. Vou até o quarto e pego meu celular no carregador. Também morto.

Saio verificando os outros cômodos. Geladeira, televisão, som, aparentemente tudo que estava em alguma tomada, fritou.

Sou eu quem está frita. Tenho um prazo para poucas horas e um arquivo preso no meu computador.

– Mas que bela merda é essa?!

Visto um casaco comprido sobre meus pijamas e calço a sapatilha ao lado da porta de saída, com o computador dentro de minha mochila. Tudo está apagado, então desço o mais depressa que consigo os treze andares. Corro até o carro e lamento, pela milésima vez, não ter uma vaga dentro da garagem do prédio.

Ligo o carro e o barulho do motor é reconfortante, na verdade, o barulho de algo funcionando que  é reconfortante. Prendo meus cabelos encharcados em um coque e enxugo meu rosto em uma blusa que esqueci há pelo menos um mês no banco traseiro.

Ligo os faróis e vou em sentido à avenida principal da cidade. Pelo menos, não haverá trânsito. As ruas estão desertas, mas ainda assim tudo parece tomado pela tempestade que ainda cai com estrondo por todos os lados.

Vinte e sete minutos depois, chego ao meu destino. Meu dedo aperta o interfone com força, sem desgrudar dele até que um ruído indique que está sendo atendido.

– Que porra! Quem é?

As palavras chiadas me fazem sorrir. O mesmo de sempre.

– Sou eu! – Grito, cuspindo água da chuva, para o aparelho preso ao concreto, e um barulho longo indica que os portões foram abertos.

Corro a distância de um portão até o outro e começo a subir. Pelo menos são apenas dois andares desta vez.

Eli está parado à porta, com a cara sonolentamente raivosa.

– Que merda é essa, Charlie? – Ele pergunta e a carranca se foi. Está confuso e não posso culpa-lo.

Ignoro as palavras dele, em especial pelo apelido, e entro. Ele perdeu o direito de me chamar assim. É Charlote.

– Sua namorada está aqui?

– Só se você arrumou alguma para mim… – Ele diz, fechando a porta e se dirigindo à pequena cozinha de seu loft.

Eli coloca pó na cafeteira e liga a máquina.

– Não sabia que deveria arrumar uma. – Respondo, enquanto retiro meu casaco encharcado e o deixo em um canto no chão, junto às minhas sapatilhas.

Ele apenas cruza os braços e me encara. E sei que isso não é por causa do pijama curto demais e estampado de Mickey. Mas aparecer de madrugada no apartamento do seu ex, não, não é uma coisa que eu faria. Não em mil anos. Não quando foi ele quem me mandou embora.

– Meu computador torrou. Quer dizer, tudo lá em casa torrou por causa da tempestade e preciso enviar o arquivo que está nele. E por isso não liguei antes, estou sem telefone também.

– Agora?

– O que?

– Precisa enviar agora?

Checo meu relógio de pulso. O cheiro do café já está me alcançando.

– Em mais ou menos duas horas.

Ele balança a cabeça e coloca café em duas xícaras grandes de chá. Nunca vou entender porque não canecas, ou xícaras de café, se a ideia for beber pouco.

Me entregando uma das xícaras e uma toalha que não sei de onde surgiu, ele pega minha mochila e tira o computador de lá. Ele faz o mesmo que eu, tenta liga-lo, sem sucesso. Então ele pega uma caixa de ferramentas que está na mesa perto do sofá e começa a abrir a máquina.

Com precisão, retira os parafusos e analisa cada coisa. Pega seu computador e o conecta em alguma parte que não sei o que é. Seu cenho está franzido, afinal, ele nunca se lembra de colocar os óculos.  A esta altura, já terminei meu café e vou até a pia colocar mais. Sequer o ofereço, porque sua xícara continua intocada.

Seus óculos estão na pia, do lado do escorredor. Pego e levo até ele.

– Obrigado. – Ele diz e os coloca, continuando a mexer.

Depois de quase uma hora, ele me encara.

– Quando fez o último backup?

– Quando eu… – Tento pensar.

– Sim, lembra, eu a ensinei, você disse que aprendeu e não quis que eu fizesse.

– Sim, aprendi como se faz e todos os dias me lembrava de que deveria fazê-lo, o que não significa que eu fiz.

– Sabe, para alguém tão controladora, você deveria…

– Lá vamos nós de novo… – Interrompo-o.

– Certo, quando foi? – Ele pergunta, mal-humorado.

– Não foi! Não fiz. É o que quer ouvir? Que eu errei? Me atrapalhei e não fiz! – Respondo quase brigando e já não sei se estou falando apenas sobre o computador.

Ele respira fundo.

– Não tem jeito, queimou tudo, Charlie. Meu computador não conseguiu recuperar nada.

– Mas tem que haver uma forma, não é possível que tudo tenha se perdido e que todo meu trabalho e meu esforço e minhas horas de sono tenham ido pelo ralo em um piscar de luzes! – Falo as palavras rapidamente e o silêncio inicial de Eli me indica que não há nada a ser feito. Apenas a ser refeito.

Está certo. Três dias de trabalho perdidos e agora tenho, checo o relógio, uma hora para terminar o que levei três dias inteiros. Respiro fundo, tentando abstrair a notícia. Não consigo, estou ferrada. Eu não me esqueço, eu não perco prazos, eu passo noites em claro, eu não como e não durmo se for preciso. Mas eu não perco prazos. Tudo funciona segundo meus ditames, no meu tempo, nas minhas regras.

– Não pode controlar tudo Charlie, ligue para seu chefe, ele vai entender e lhe dar mais tempo.

Sim, eu posso controlar tudo. Foi exatamente o que aprendi. Controle. É a palavra chave para o sucesso. Controle seus impulsos, suas expectativas, programe tudo, aprenda e faça que precisem de você, seja necessária, mostre como planeja bem e alcança todos os resultados. Ou até mais do que isso.

A sensação agora é de que estou segurando um bloco gigante de concreto sob minha cabeça. O peso é muito grande e não consigo segurar por muito mais tempo. E assim, as comportas se abrem e começo a chorar.

E, quanto mais eu choro, mais penso em como tudo isso é ridículo. Eu perdi todo um trabalho por causa de uma tempestade. E estou chorando por isso. Talvez não só por isso, mas também por isso.

Eli aproxima sua mão de mim, como se fosse tocar meu ombro, mas se retrai. Com certeza sem saber se estaria ultrapassando algum limite imaginário. Eu não ligo para limites, controle não tem limites.

Me aproximo de Eli e o abraço. E ele retribui. Me puxa para seu colo e ficamos assim pelo tempo que parece uma eternidade. Até que eu consiga me acalmar.

– Eu não tenho nem telefone para ligar… – Minha voz está estranhamente chorosa, o que me faz rir e Eli sorrir.

– Acho que pelo menos nisso, posso ajudar.

O telefone chama algumas vezes antes de atender.

– Alô?

– Caio?

– Sim, é você, Charlote?

– Sim, sou eu. – Estou andando de um lado para o outro e Eli foi fazer mais café.

– Ah não reconheci o número.

– Meu telefone queimou com a tempestade e… Bem, a questão é que não consegui terminar a revisão do texto e não vou conseguir te enviar dentro do prazo, que encerra em, – verifico o relógio mais uma vez – sete minutos.

Caio ri do outro lado da linha.

– Não se preocupe, tivemos um adiamento na data de publicação deste volume, algo com o final. Me envie até o fim da semana, ok?

– Só isso? – Pergunto.

– Como assim?

– Achei que iria, no mínimo, me despedir. – Ouço a risada icônica de Caio.

– Charlote, você é a revisora mais pontual que tenho e nunca atrasou nenhuma entrega nos quatro anos que trabalhamos juntos.

– E isso quer dizer que…

– Que eu confio no seu trabalho e que você não o deixaria de lado se não tivesse um excelente motivo.

– Ah claro.

– Ok, nos vemos na sexta então.

– Ah, só mais uma coisa!

– Sim?

– O livro é uma porcaria. – Caio começa a rir de novo.

– É por isso que não é você quem seleciona os materiais Charlote!

Coloco o celular na mesa e me sento mais uma vez no sofá. Eli se senta ao meu lado e me entrega uma caneca – sim, uma grande caneca! – cheia de café quente.

– Rápido e indolor? – Ele pergunta.

– Rápido e indolor. Agora, por que ainda insiste em beber café nessa xícara se tem que reabastece-la o dobro de vezes?

– Porque gosto de lembra-la que você não pode controlar tudo, Charlie.

Ele responde sorrindo. Coloco meus pés em cima da mesa e me apoio nele, enquanto bebo mais café.

Pego o controle da televisão que está ao meu lado e ligo, colocando no canal que passa apenas filmes em P&B. Está passando ‘Controle – A Vida de Ian Curtis’. Acho apropriado para o momento e deixo no canal.

– Não vamos ver isso, vamos?

Sorrio para ele.

– Claro que sim, o controle está do meu lado do sofá e está comigo. – Balanço o controle em minha frente para que ele o veja. – E é minha vez de escolher. – É claro que todas essas regras insanas, estabelecidas por mim, valiam apenas na época em que dividíamos esse loft como se fosse o melhor lugar do mundo.

– Não se acostume em tê-lo por muito tempo, Charlie. – Ele sorri do modo que não sorri há muito para mim. É sincero e despreocupado. Um pouco convencido também, como quando me faz ter um orgasmo.

– Jamais passaria isso por minha cabeça, Eli, jamais. – Respondo sorrindo, bebericando meu café e voltando minha atenção para a tela, certa de que, mais algumas horas não diminuiriam os danos que preciso reparar no meu apartamento, mas talvez, pudessem reparar outros. Desde que tudo esteja sob o meu controle, é claro, tudo ficará bem.

Este conto foi escrito inspirado pelo desafio do grupo Café com Blog, com base na palavra ‘Controle’ e na imagem do topo da postagem!

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  • Lais de Paula

    Adorei o conto. Rico em detalhes, assim que eu gosto. Pretende escrever outros? Ficarei aguardando o próximo!

    responder
  • jadeafranco

    Me identifiquei muito com menina Charlote, também sou obcecada por controle, prazos, datas, dias, tudo pontual, milimetricamente e perfeito. E eu também tenho uma pequena síncope quando o perco, e eu sei que isso é ruim, mas acontece. 🙁

    Beijos
    http://www.jadeamorim.com.br

    responder
  • Flavi – Memorias de uma Guerreira

    Olhaaaaaaa, se saiu bem com o desafio hein menina!
    Estou fervendo meus neuronios para conseguir adequar um texto ao meu desafio também, mas olha, acho que tá quase lá!
    Você escreve muito bem, deve ser por isso que a lindona na lila te acolheu como parceira ♥
    Dom para poucos! Sucesso! 😉

    Clica aqui se quiser ver minha ultima postagem |
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  • giolundgren

    Adorei seu conto, de verdade.
    Me lembrou o tempo que eu tinha um blog de contos e era tão gostoso escrever.

    Um beijo
    http://www.oxentebonita.com.br

    responder
  • nannamais

    A gente escreve na mesma revista e pela primeira vez que visito seu blog. Gostei do conto, vc conseguiu se sair muito bem no desafio.
    Acabou de ganhar uma leitora fiel.
    Beijo

    responder
  • Dandara

    Uau adorei, pensei que era resenha de algum livro. Já tava doida pra chegar no fim pra ver que livro era rsrsrs. Você se saiu muito bem nesse desafio. Gostaria de saber se vai ter continuação ? Adoraria ler rs. Me avisa no Facebook ! Beijos e parabéns pelo trabalho !!!!!

    responder
  • Tatiana Castro

    Conto muito bem escrito!!! Entrei completamente no desespero dá protagonista, pois me identifiquei em dois aspectos. Um: sou controladora…Admito…RS… Dois: no final do ano raio fritou metade das minhas coisas aqui de casa, entre eles o monitor, a Smart TV, a estação de trabalho… Felizmente, o notebook sobreviveu.
    Quero ler mais contos seus, parabéns!
    Beijos,
    http://www.gatitaecia.blogspot.com.br

    responder
  • Vitória Bruscato

    Que texto massa! Realmente, nem sempre podemos estar no controle de todas as situações e acidentes acontecem fazendo com que percamos totalmente o rumo que havíamos tomado! ótimo texto!

    responder
  • Malu Silva

    Nunca fui muito de ler contos, porém adorei conhecer o seu. E que legal que faz parte de um desafio! É ótimo ver o incentivo a escrita por aí <3

    sorria sempre 🙂
    http://www.malusilva.com.br

    responder
  • Daniele Yui

    Muito bom o conto, vou até ler novamente. Você tem uma veia muito boa para ser escritora, viu? Talentosa. Continue investindo neste talento que você vai longe. Bjo!

    http://www.pandapixels.com.br

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  • belezacordecereja

    Essa moça e totalmente o posto de mim. Kkkkk sou toda desorganizada e sempre faço tudo em cima da hora. Kkkkk

    Gostei do conto, e amo ler contos. Parabéns, você escreve muito bem. Beijão

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  • Dud’s

    Muito legal o conto! Bem escrito e detalhado. Gostei bastante da Charlotte e fiquei curiosa por outras histórias 😀

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  • Leatrice Barros

    Ameeei o conto!! Eu não sou tão pontual quanto ela, quem sabe um dia eu evolua hahahah

    Beijos!

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  • Fernanda Zimmer

    Amei o conto, super rico em detalhes, parabéns você tem um dom <3

    responder
  • Thato – Deveras Sente

    Meu Deus moça eu viajei no texto, perfeito! Adorei!

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  • Cilene Mansini

    Adorei o conto, você escreve muito bem e concordo com outros comentários ai em cima, que tem deveria ter continuação 🙂

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