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Conto ♥ Apatia

Aquela história de calmaria antes da tempestade é a maior mentira que os ditos populares já me contaram. Se existisse, marinheiro nunca seria pego de surpresa.

Calmaria de verdade vem é depois da tempestade, da revolta, da depressão profunda, das ondas que viram barcos, da água salgada impossível de beber. Mas nem de longe significa que calmaria é céu limpo, sem risco de tempestade desabar, sem chance de furacão.

Quando vem depois da tempestade, calmaria é apatia. É continuar sem rumo, perdido no bote salva-vidas, boiando em mar aberto, sem saber exatamente quando um barco vai passar e resgatar. Se passar. Se resgatar.

Meus dedos correm pelas prateleiras extensas, algumas com camadas a mais de poeira do que outras, espaços vazios aqui e ali, o odor de papel antigo, o novo misturado ao pó e ao café que parece circular todas as fileiras.

Sigo pela textura, liso demais, detalhado demais. Parece suficientemente comum. Tiro o exemplar da prateleira e retorno para a mesa, no canto, com vista para todos os pedaços do lugar decorado sem um estilo propriamente dito. Como os porta-guardanapos com estampa vintage Coca-Cola, livros de capas sem nomes espalhados nas mais diferentes disposições e os candelabros de arabescos com velas de mentira pendendo do teto.

O mais importante mesmo é que, daqui, livro aberto na ponta da mesa e café fumegante sendo reposto mais rápido do que bebo, posso ver as ruas abarrotas de cinza esmaecido craquelado trançando de lado a outro, para inadiáveis conversas, encontros e tarefas. A vida é mesmo inadiável. Só que tenho sérias dúvidas de que qualquer deles está a se dirigir para viver mais um dia.

E a apatia é, sem dúvidas, o estágio mais sem vida, já que é desprovido de emoções. Não tem a bênção do desconhecido antes da tempestade ou o fulgor intenso do turbilhão de sentimentos durante a revolta. É simplesmente estático, parado, introvertido. É ser queimado pelo sol do meio dia e não se incomodar, mergulhar e não sentir a ausência do ar. Já não respira direito há tempos.

A fita poderia ser acelerada, como naqueles filmes em que procuram evidências de um crime, mas não será necessário parar, porque tudo se repete e repete, vem e vão, vão e vem. E uma melancolia bonita parece surgir por um instante, mas é tão rápida que desfaz em fumaça que esfarela por entre os dedos.

– Mais café?

– A roda não para de girar, não é mesmo? – Esqueço por um instante que meu monólogo era apenas interno, e que a jovem que tem sempre um sorriso gratuito a oferecer não tem nada com meus problemas. Ou com minha apatia. – Claro, eu aceito, obrigada.

E os carros continuam a passar, as pessoas a caminhar, a chuva a cair, o vento a soprar, o bote à deriva em alto-mar esperando pelo resgate.

Há um tempo que não aparecem contos por aqui, e esse acabou surgindo do meio do nada e acabou vindo parar aqui. Estava sentindo falta das viagens eternas que eles me proporcionam…

Que a Força esteja com vocês!

xoxo

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Comente este post!

  • Kimberly Kelly

    Que a força esteja com você!

    Escreva Rê, escreva!

    responder
    • Retipatia

      Obrigada, Kim! Vou escrever sempre, pode deixar! Obrigada pelo carinho! <3 <3 <3
      xoxo

      responder
  • Kimberly Camfield

    Aaaaah que texto mais maravilhoso!
    Eu acho que tô sendo repetitiva nos comentários que deixo por aqui, mas seus textos parecem ter um ritmo próprio acompanhando cada história. Esse me faz acompanhar o movimento das ondas. Indo e voltando da beira em um ciclo eterno, faça chuva ou faça sol. Posso sentir e ver a pessoa ali no meio daquele mar, seguindo o levantar de cada onda, para depois abaixar (e me pergunto se essa pessoa não sou eu, apesar de não me sentir apática, mas em um meio termo que não acaba). E para ser bem sincera, não sei se devemos esperar pelo resgate que pode nunca chegar ou aprender a nadar (nunca aprendi a nadar por sinal, talvez esteja na hora).

    Beijão

    responder
    • Retipatia

      Oi Kim!
      Ah que coisa mais linda! Não tá sendo repetitiva nada, adoro saber sua opinião sobre os textos e gosto ainda mais de saber pra onde a leitura te levou, que sensações trouxe, pode acreditar que não tem coisa melhor que ler isso! Também não acho que devemos sempre permanecer à deriva aguardando o resgate, apesar de não ser a conclusão do texto… ahahah E eu também não sei nadar, é uma boa aprender, como você falou! <3 <3 <3
      Obrigada pelo carinho e pela visita! <3
      xoxo

      responder
  • Lunna Guedes

    Já li duas vezes e ainda estou em transição de um estado para o outro. Vejo o livro, a xícara de café. Não percebo os goles, mas os movimentos das mãos junto as páginas, virando-as e a história se desenha em meus olhos. Está claro e as pessoas entram e saem. A vida fica a deriva, a espera de uma tempestade.

    Ps. Se quiser, na próxima edição tem espaço para esse vosso conto.

    responder
    • Retipatia

      Oi Lunna!
      Ah, as impressões sobre o texto e a imaginação que faz surgir são sempre detalhes que me enchem de amor ao ler. <3
      P.s.: posso surtar agora ou surto mais tarde??? ahaha É claro que quero, que honra! Tô no céu depois de ler isso, sem mais...
      E obrigada pelo carinho e pela visita!
      xoxo

      responder
  • Fernanda Akemi

    Que texto maravilhoso!!
    Eu me identifiquei muito. Passei, ou melhor, estou passando por um momento conturbado da minha vida e em vários momentos me sinto nessa apatia.
    Acho que sou esse bote à deriva esperando um resgaste.
    Lindo texto mesmo. Parabéns!!!

    responder
    • Retipatia

      Oi Fernanda!
      Obrigada, fico feliz demais de saber que o conto lhe trouxe essa identificação e que gostou dele! Acho que em algum momento somos todos botes à deriva, aguardando um salvamento, resta saber se onde (ou de quem) é que ele virá, não é mesmo?! <3
      Obrigada pela visita! <3
      xoxo

      responder
  • Barbara

    Ah como adoro suas palavras fazia tempo que não passava por aqui!!

    Bjinhos

    responder
    • Retipatia

      Oi Barbara!
      Ah que bom que voltou! Fico feliz que goste da minha escrita! <3
      Obrigada pela visita! <3
      xoxo

      responder
  • Tatiane de Araújo silva

    Estou lendo seus contos aos poucos e tenho adorado. Como descreve coisas corriqueiras e sentimentos de forma tão poética.
    E realmente depois de um tempestade, um tempo conturbado, o que fica é a sensação de apatia, de ficar sem rumo….

    responder
    • Retipatia

      Oi Tatiane!
      Ah feliz em saber disso! Gosto muito de pensar nesses momentos comuns e corriqueiros e destacá-los nos textos, feliz que esteja gostando de conhecê-los! <3
      Obrigada pela visita!
      xoxo

      responder