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Conto ♥ Você Olha ou Você Vê?

Aqueles olhos que refletem a cor do mundo inteiro, que sempre veem o que enxergam. Ou que veem tudo que os outros são apenas capazes de enxergar.

– Quando foi exatamente que isso começou?

– Quando caímos no sono, ou quando exatamente anoitece? Quando nos apaixonamos ou quando, de fato, sentimos o passar do tempo? Ou quando foi exatamente que tudo começou a dar errado na humanidade?

– Não me responda com outra pergunta, Gisele.

– Sempre respondem às minhas perguntas com outras perguntas…

– Quem?

– Todos… mamãe.

– Esteve com sua mãe?

– Todas as quartas e sábados às 18 horas e ao meio dia.

– E como ela está?

– Às vezes presente, às vezes em lugar algum.

– E Adam, ainda o vê com frequência?

– Sempre que ele aparece.

As demais perguntas passam desapercebidas aos ouvidos. A boca responde em automático. Conto os minutos para tudo acabar. Faltam 28 minutos e dali a 20 apenas 8.

Sigo a passos contados para casa, mil e duzentos e três até a estação do metrô e de lá, são 29 minutos para desembarcar.

Contados mais quatrocentos e sete passos, o encontro. No terceiro degrau, um cigarro aceso no canto da boca, a fumaça subindo em chumaços desfiados pela brisa. As mãos passam pelos cabelos como se precisassem ficar mais bagunçados. As primeiras casas da camisa estão vagas, o olhar encara a grama por aparar do meu jardim. Outra tragada e o olhar chega onde estou estacionada vendo-o há cinquenta e sete segundos.

Ouço seu suspiro daqui, desse pedaço de chão cinza que bate com a cor de sua camisa, que faz destacar a cor luminosa de seus olhos úmidos.

Dou os quinze passos que nos separam e me sento ao seu lado, deixando meu corpo pender para o seu, minha cabeça se encaixando no seu ombro.

E está tudo lá, como sempre. As olheiras, os ombros baixos e o enevoado no olhar. O vinco entre as sobrancelhas, as pequenas rugas nas laterais dos olhos, o cheiro de cigarro misturado ao álcool e a ele.

– O que você vê, Adam? – Deixo minhas pálpebras pesadas descansarem.

– Carros em tons sem graça, pessoas em roupas sem graça. O céu escuro e sem graça. O barulho sem graça dos motores, das pessoas. E então tem você… – Não contenho o sorriso que minha boca forma, ainda que seja sem graça.

– Sem graça. – Completo e ele ri. Seus dedos afastam as mechas da minha franja e deslizam por minha bochecha.

– Com toda a graça, eu devo corrigir.

Seu toque cessa e, com ele, meu sorriso. Um suspiro alto soa e não sei se sai de sua boca ou da minha.

– E o que você vê? – Abro os olhos então, mas me recuso a encarar os que fitam. As pontas de seus dedos percorrem minhas pálpebras, fechando-as novamente.

Respiro fundo, uma. Duas. Três, quatro vezes.

– Vejo a luz dourada dos postes de luz refletindo nos galhos das árvores como se fossem raios de sol. Mas são mais bonitos porque contrastam com o céu escuro. Vejo a sombra dos passos das pessoas no cimento. O casal que passa de mãos dadas e sorri mesmo depois do dia atarefado. Vejo o olhar perdido da garota que passa na condução lotada. Vejo o buraco no muro que abriga latinhas vazias… e vejo todas as coisas ruins que te fixaram aqui.

Um longo suspiro, ou dois. De nós dois.

– Coisas ruins sempre me trazem aqui. – Não trouxeram, fixaram.

– Lamento por elas. E, mesmo sendo egoísta, não quero que pare de se fixar aqui. Quero apenas que altere os motivos.

– Não sei se consigo alterá-los, sempre perco o controle.

– Não consegue ver Adam? Não se trata de controle, nunca se trata de controle.

Não se trata do fundir de cores que vão do amarelado, passam pelo verde e se misturam ao azul. Não se trata da cumplicidade ou da personalidade, ou da atenção que espelham. Se trata da alma que refletem.

Conto escrito para um longínquo desafio Palavra & Imagem do grupo Café com Blog, que deveria utilizar a palavra fixar e a imagem do topo. Geralmente coloco uma música de sugestão para leitura do conto, mas acho que esse combina bem mais com esse o barulho do silêncio…

Aos poucos, vou voltando a postar contos aqui no blog, saudades de escrevê-los e compartilhar com vocês. Esse ficou bem curtinho e trouxe personagens que já existem comigo há um bom tempo, mas que, por razão ou outra, nunca apareceram nas histórias aqui do blog. Espero que gostem e me contem se tô perdendo o compasso ou se ele pelo menos se mantém… rsrsrs

Que a Força esteja com vocês!

xoxo

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  • Luly Lage

    Eu ando muito sensível com isso de “olhos”. Não sei o motivo, porque nunca liguei pra isso (mentira, sei sim). Fiquei imaginando vividamente a Gisele e o Adam aqui conversando, e eles são iguais às versões da Disney de mesmo nome em Encantada e A Bela e a Fera, também sabe-se lá o porquê já sabendo!

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    • Retipatia

      Oi Luly! Eu sempre achei essa questão bem sensível, do que cada um vê ou enxerga também… é peculiar e particular, ao mesmo tempo. E eu só preciso dizer que Gisele vem inspirada exatamente de Encantada (será por que né?! ahahahha) e Adam não tinha exatamente essa similaridade com o de A Bela e a Fera, mas eu até que gostei! kkkk Vou adotar, na minha cabeça agora ele é o Adam da Bela, mas da Gisele, no caso! kkk
      Obrigada pela visita! <3
      xoxo

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  • Kimberly Camfield

    Oi Rê! Eu não sei se sou uma pessoa que “viaja” muito, mas só fui entender direito a história depois de ler os comentários, dizendo que lembrava Enrolados. Daí caiu a ficha sobre a similaridade com a mãe dela e o Adam, mas confesso que antes disso minha interpretação tinha sido outra. Confesso que li tu sobre um olhar mais espiritual. Quando saiu do primeiro parágrafo, em que fala sobre enxergar e depois foi para o diálogo, eu imaginei que fosse alguém se consultando com um psicólogo sobre as coisas que enxergava (espíritos, visões?) e o psicólogo tentando entender quando aquilo começou. E daí quando ela falou da mãe dela, que às vezes estava presente e às vezes em lugar nenhum eu imaginei que ela via o espírito da mãe dela- o que explicaria os sumiços repentinos e as aparições repentinas- e que o adam também era um espírito, mas constante (eu disse que viajo! ahaha). Mas percebi que não poderia ser isso quando ela encontra o Adam.
    Agora sobre a questão do que cada um enxerga, acho que é muito verdade isso. Me faz lembrar de algo que meu professor de filosofia disse. Que todos nós temos diferentes visões de mundo e experiência de vida, e isso nos leva a assumir determinada posição, ter determinada opinião e encarar o mundo ao nosso redor. Eu acredito que realidade é algo muito mutável, justamente por essas diferentes visões. E um exemplo recente (e meio idiota) é esse meu de interpretar toda a história e o diálogo de um jeito diferente haha Mas eu acredito muito nesses negócios de espiritismo e mediunidade, e como quando eu era mais nova (ok até alguns anos atrás, nem tão mais nova assim) eu era mais sensitiva, por falta de palavra melhor. Acabei me identificando com alguns trechos e interpretando para a minha realidade, minhas crenças e minha visão de mundo. Eu sentia presenças que iam e vinham, em alguns raros momentos via. E o humor das pessoas influía muito sobre mim. Parecia que eu carregava comigo, coisas, sensações, sentimentos, ‘presenças’ que não me pertenciam. ” Às vezes presente, às vezes em lugar algum”.

    Beijão, amei o texto e desculpa pelo comentário gigantesco (tenho um sério problema com escrita porque não sei como faz pra escrever pouco haha)

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    • Retipatia

      Oi Kim! Então, vamos por partes. Essa sua ideia inicial sobre a consulta e ela ver coisas, garota, que percepção, tu acertou em cheio. Mas posso dizer que a mãe dela e o Adam estão vivinhos! ahaha E essa história (já que esse conto é só um trechinho que surgiu de uma história beeeem maior), é bem espiritual mesmo, tem algumas nuances diferentonas do que eu costumo escrever. Eu devia estar meio viajando nas ideias quando surgiu na cabeça… ahahah
      Sobre o que cada um enxerga/vê eu super concordo com seu professor de filosofia (matéria maravilhosa que eu amo), é tudo questão de ponto de vista e assim, cada um nota um detalhe diferente, algo distinto. É a beleza e a perversidade das coisas, no fim das contas.
      E, já desfizemos a confusão entre Enrolados e Encantada kkkk Mas, a relação é mais com os nomes dos personagens e não muito com as histórias deles. O nome da Gisele veio mesmo do filme Encantada! <3 heheheh
      Adorei saber mais desse seu lado sensitivo, acho incrível como isso é em algumas pessoas, mais assim, digamos, aflorado do que em outras. E eu realmente acredito que afetamos muito as pessoas que estão a nossa volta, seja com pensamentos, atitudes, aquele ar que paira sobre cada um de nós e enfraquece ou fortalece um local. <3
      E não ligue pros comentários enormes, eu amo demais todos eles! Comigo não precisa ser sucinta, jamais! <3 <3
      xoxo

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  • Sophia Cuñado

    Gente, eu amei a tua escrita, o conto ficou envolvente e deixando com vontade de mais, escreva mesmo!

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    • Retipatia

      Oi Sophia! Ah, super obrigada, feliz que tenha gostado da escrita e achado o conto envolvente! <3
      xoxo

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  • Lyza Cavalcante

    Amei a forma com que descreve cada fato em riqueza de detalhes, como consegue nos levar, através da leitura pra dentro da sua história. Faz muito tempo, muuito mesmo, que não sinto tanto prazer ao ler e tanta vontade de devorar livros novamente. Obrigada pelo belo conto. Não sei se já tem mas, quando tiver um livro publicado, não esqueça de mim!

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    • Retipatia

      Oi Lyza! Eu acabo de ganhar não só o dia, mas como a semana inteira só por causa desse seu comentário lindo! Amei saber que o conto conseguiu te levar para a história, te mostrar os detalhes e ainda por cima te fazer querer ler mais e mais histórias! Obrigada pelo carinho! E, quando tiver livro (um dia quem sabe!?), pode deixar que te conto! <3
      xoxo

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