às quartas nós lemos a GLit

receba a newsletter sobre literatura, criatividade e criação de conteúdo gratuitamente no seu e-mail

Conto ♥ Jack

Os passos ecoam forte no chão de terra. Os galhos secos e as folhas se esfacelam com o pisar, ranhuras são feitas nas solas dos pés, que não cessam, assim como o resfolegar que segue tão próximo que parece vir em baforadas na nuca.

O coração se aperta a cada bombear de sangue, que corre rápido pelas veias que queimam pela adrenalina. O vestido de tecido fino gruda no corpo pelo transpirar.

Raios de sol penetram pelas copas das árvores, que começam a ficar mais escassas. Uma brisa fresca toca meu rosto junto ao primeiro fio de esperança. Depois de tanto tempo.

Como num último fôlego, minhas pernas conseguem imprimir mais velocidade, é a sede por liberdade. Tudo seria perfeito se não fossem as unhas que se assemelham a garras que seguram meu ombro, fazendo-me virar, torcer, tropeçar. Vou ao chão. Desabo mais em mente que em corpo.

A criatura não está ao meu redor, tampouco ao meu lado. Não consigo vê-la em lugar algum, mas ouço seu riso, o estalar dos gravetos sob o peso de seus passos. O sangue quente escorre pelo meu ombro, a pele arde, a carne lateja.

A pressão está caindo.

O meu próprio respirar atrapalha meus ouvidos, o som parece se propagar na mata e vir de todos os lados. Me ajoelho, minhas mãos seguram montes de terra e mato. Vejo seus pés ossudos vindo em minha direção. Não estão rápidos, são lentos, não precisam correr porque eu não estou indo a lugar algum. Meu corpo desistiu, meu braço esquerdo mal consegue conter meu peso com o ombro debilitado.

– O que está esperando? – Eu pergunto, ainda de quatro, aos pés da criatura.

Você, é claro. – Sua voz soa distante, ainda que esteja parada à minha frente. Tão próxima que, seu eu respirar fundo, encostarei nela.

Não compreendo o que quer dizer. Mas, talvez, a criatura siga um tipo de lógica diferente da minha.

Os batimentos estão caindo!

Me afasto alguns centímetros e olho para cima, para o meu fim. A caveira usa um terno de risca de giz, alinhado e puído. Deixo meu peso cair sobre minhas pernas e me apoio nelas, liberando minhas mãos enquanto meus olhos continuam a subir.

Uma luz branca e forte cega meus olhos, não consigo ver nada. Contudo, este é o sentido que menos me importa, na verdade, no momento, é aquele que menos me preocupa. Meu corpo está sendo partido, ou parece que está. Milhares de agulhas perfuram meu peito, minha garganta queima e arranha, cada partícula do meu corpo grita em agonia. Quero gritar, alto, forte, extravasar toda a dor que sinto.

Vamos perdê-la!

Não consigo gritar, então eu sufoco. Estou novamente na floresta, que está exatamente como antes, tanto o quanto não está. Há uma neblina que se entremeia pelas árvores e deixa tudo opaco. Não vejo sinais de luz do sol ou término das árvores. Para qualquer lado, é tudo igual.

Igual e vazio. Nem sinal da criatura, apenas a dor que invade meu ombro esquerdo. De todo modo, esta não me incomoda tanto agora.

Lágrimas quentes rolam por meu rosto, a mata parece pesar sobre cada ofegar meu.

– Olá? – Falo alto, ou tão alto quanto consigo.

Ouço passos novamente e a figura de pés esqueléticos me vem à cabeça. Mas não se trata dela.

Um homem vestido num terno de risca de giz vem caminhando, a expressão nublada em sua face. Sem nenhum tipo de cerimônia, se senta ao meu lado, num tronco que parece um banco, mas que poderia jurar não estar ali há apenas um segundo atrás.

– Não quer se sentar? – Ele pergunta, indicando o espaço ao seu lado.

É o que faço, me sento e o observo. As linhas de seu rosto me indicam que deve ter a minha idade. Talvez apenas alguns anos a mais.

– Está aqui há muito tempo? – Me ouço perguntar, quando o que eu realmente queria saber é quem ele é e que lugar é este.

– Há tempo o bastante, ao contrário de você.

– Por que diz isso? Nem eu sei há quanto tempo estou aqui.

– Cerca de uma hora.

– Como sabe disso?

– Aprendemos a contar o tempo, sabe, com o tempo.

– Isso não faz sentido algum. – Respiro fundo e meu corpo inteiro dói. É diferente do que senti antes, é algo mais próximo da dor das feridas que não consigo enxergar.

– Algumas coisas não foram feitas para ter sentido.

– Isso parece frase de para-choque de caminhão. – Me permito um riso, mas faz tudo doer ainda mais, tão forte que eu gemo e me abraço em meus próprios braços.

– O caminhão tem que ter tirado a frase de algum lugar, não acha?

– Provavelmente.

Ficamos em silêncio pelo que poderia ser um segundo ou uma eternidade, ainda não sei contar o tempo, aparentemente.

– Por que está aqui, Eva?

Balanço a cabeça em negativa.

– Eu gostaria de saber a resposta…

– Jack, pode me chamar de Jack.

– Eu gostaria de saber a resposta, Jack.

– Mas você sabe a resposta, Eva.

– Não, eu não sei. Sequer sei onde estamos.

– Claro que sabe.

Levanto a sobrancelha ao encará-lo.

– Posso dar uma ajuda, se quiser. – Ele completa.

– Por favor.

– Estamos no seu mais profundo desejo.

– No meu… mais profundo desejo? – A ideia é risível. – Eu tenho certeza que não desejo estar perdida numa floresta, com um desconhecido e sendo perseguida por uma criatura estranha, Jack.

– Claro que não, seu desejo é muito mais sombrio que isso, chega a me dar calafrios.

Eu sorrio. Talvez eu esteja sonhando.

– Nas suas próprias palavras, Eva, “fiquei maior do que eu sou e isso me deixou vazia”. – Ele volta a falar.

É a minha vez de sentir calafrios, que são seguidos por lágrimas que sequer sei quando ou se elas cessaram em algum momento.

Tentem mais uma vez!

– O que há, Eva? – Jack pergunta.

– Ouço os aplausos, os sorrisos, as aparências. As cartas, os pedidos. Todos esperando algo que eu simplesmente não sou capaz de ser, um espaço maior do que eu sou capaz preencher. As expectativas altas, as falhas expostas como se fossem defeitos. Qualquer coisa é exposta. Me perdi no caminho. E não sei como encontra-lo. Então… – As palavras ficam presas em minha garganta. As cenas do que aconteceu logo antes de eu vir parar aqui tomam minha mente.

– Ficou feliz quando tudo aconteceu, não é mesmo?

Fecho meus olhos e sinto as lágrimas rolando por meu rosto. Eu concordo. Quando o carro rodou na pista e vi aquele caminhão se aproximando, eu não me movi. Fiquei parada esperando o impacto, esperando o fim. Seria a resolução mais prática de todos os meus problemas, não haveria mais vazio, não haveria mais nada.

Eva!

– A pergunta agora, Eva, é… – A voz de Jack soa tortuosa, instável. – … você mudou de ideia?

Abro meus olhos e o encaro. Seu rosto está perdendo a forma, seus traços se dissolvendo, toda a vida deixando seu ser. Em segundos restam apenas ossos vestindo um terno puído de risca de giz, uma caveira com crateras negras no lugar dos olhos me encarando.

Caio do banco ao tentar me afastar e sua risada soa oca.

Meu ombro dói, meu corpo inteiro reclama quando me levanto e começo a correr. Seus passos soando firmes atrás de mim. Estamos exatamente como começamos.

Afastem-se!

Sinto sua aproximação, minha exaustão me impedindo de dar passos firmes. Tropeço nos meus próprios pés e caio no chão, abraçando-o como se fosse minha própria cama. Os pés novamente aparecem no meu campo de visão. Espero pelo golpe, a dor que me será fatal.

Os pés ossudos estão parados a meros centímetros do meu rosto.

– O que está esperando? – Grito. Dessa vez é realmente alto.

– Sua decisão, minha cara.

Fecho meus olhos, porque, não importa como seja, eu já decidi.

Estamos perdendo-a novamente!

***

Abro meus olhos, a claridade está fraca, vem apenas por debaixo da porta fechada e da luz da lua do lado de fora do quarto.

Me levanto da cama e observo Jack sentado na poltrona, que é pequena demais para ele. O trabalho exaustivo de cuidar de mim o deixa com olheiras roxas, ainda preciso convencê-lo de que não vou quebrar se ele dormir ao meu lado. Ou talvez ele ainda esteja lutando com a ideia de se apaixonar por uma paciente. Eu não luto contra esse tipo de sentimento, não luto contra nada que é bom, na verdade. Não mais.

Pego a caneca que está no criado mudo e encho de água da jarra, meus passos lentos seguem até a janela. O luar ilumina o mar e as ondas agitadas da madrugada. E, no reflexo do vidro da janela, vejo sorrir para mim, desenhado em minha caneca, a caveira de meus devaneios.

Lágrimas surgem no meu rosto e ouço o movimentar de Jack se levantando.

– Eva, está tudo bem? – Seu tom preocupado não o deixa nem durante a madrugada. Não sei se é o médico ou o quase namorado que está falando. Provavelmente, os dois.

Seguro sua mão e me abraço nele, que passa seus braços ao meu redor. Consigo ouvir o pulsar alto de seu coração. Ritmado. Forte. Vivo.

– Vai ficar.

“A fama e a glória existem ano após ano. Nada fazem por estas lágrimas vazias.”

O Estranho Mundo de Jack

Este conto foi escrito em comemoração ao aniversário do Tim Burton, em um projeto idealizado pela Gis, do blog Literalize-se e realizado através de três postagens criativas inspiradas nas obras de Burton. Aqui no blog tivemos este conto, inspirado, ainda que muito tortamente, na animação O Estranho Mundo de Jack. A animação, que eu adoro, fala de muitas coisas legais e mensagens bem interessantes. Podemos pensar que é um empreendedor insatisfeito, tentando encontrar aquilo que ama fazer. Assim como pode ser a jornada de alguém que se perdeu em seu caminho, que, apesar de ter tantos ao seu redor, sente-se incompleto e vazio. E há tantas e tantas coisas mais. Talvez com o quote que eu destaquei ao fim, faça um pouco mais de sentido a história de Eva.

Para o projeto, tivemos ainda uma postagem no Literalize-se e no Memoralices, que vocês podem conferir aqui e aqui, respectivamente.

A foto da postagem é de autoria da Luana, do Memoralices, e foi usada com a autorização da mesma.

Que a Força esteja com vocês!

xoxo

7 on 7: qual sua relação com a comida?

7 on 7: qual sua relação com a comida?

ler artigo
Conto: Amor em Tempos de Pandemia (ou seria crônica?)

Conto: Amor em Tempos de Pandemia (ou seria crônica?)

ler artigo
Saúde Mental em Tempos de Pandemia

Saúde Mental em Tempos de Pandemia

ler artigo

Comente este post!

  • Eva Victória

    Meu Deus, eu simplesmente amei ( e a personagem tem o meu nome <3 hahaha).
    Esse conto é tão a minha cara que parece ser uma coisa que eu teria escrito.

    Beijos !

    letologia.blogspot.com.br

    responder
    • Retipatia

      Oi Eva! Ahh que nome lindo o seu, igual o da personagem! ehehe <3 Feliz que tenha gostado e se identificado com ele!! <3 <3 Obrigada pela visita! <3
      xoxo

      responder
  • Bia Souza

    Meu Deus, Rê!!! Você arrasa demais! T.T
    Senti cada palavra! ♥
    Estou aqui dando uma imagem pro Jack, antes dele se transformar em “Jack Esqueleto”…
    Amei!!!

    responder
    • Retipatia

      Oi Biaaaa! Ahh obrigada linda, adoro saber quando um conto consegue fazer a imaginação fluir! E me conta, como é o Jack antes de virar caveira?!?!!? eheheheh <3
      xoxo

      responder
  • Luana Souza

    Rê, minha linda, que conto maravilhoso. Por ter sido inspirado em dos meus filmes favoritos, e você ainda ter usado minha foto no topo, se tornou um dos meus favoritos que você já escreveu (mas o que foi feito para o aniversário do Memorialices ainda tem o lugar mais no meu coração haha). Conseguir pensar numa história assim, e ainda incluir uma história fantástica é simplesmente mágico <3 Obrigada por ter entrado nesse projeto com a gente!

    responder
    • Retipatia

      Oi Lu, que delícia ler essas suas palavras! Eu também amo esse filme e sua foto ficou mais que perfeita, me apaixonei quando você mostrou e ela me inspirou MUITO pro conto! <3 Muito, muito obrigada pelo projeto, por ceder a foto e tudo o mais! <3
      xoxo

      responder
  • Talita Carbone

    Ma-ra-vi-lho-so!
    Incrível como você conseguiu criar uma história tão original e interessante baseando-se nesse personagem icônico que é o Jack. Amei!
    Beijos!

    responder
    • Retipatia

      Oi Talita! Ah super obrigada! Fico feliz que tenha gostado e achado o conto original, ainda que inspirado em um personagem já existente! <3 <3
      xoxo

      responder
  • Helô Lofrano

    Ain Tim Burton ♥️
    Parabéns pra quem escreveu, está simplesmente perfeito! Palavras detalham fato a fato e nos deixa envolvido! E essa foto hein? Já quero essa caneca ♥️

    responder
    • Retipatia

      Oi Helô! Super obrigada, feliz que tenha gostado!!! A foto da Lu tá mesmo incrível, não é?! E ela quem fez a caneca, super prendada! <3
      xoxo

      responder
  • Sueli

    Adoro oTim todos os filmes e todo esse ar mórbido cadavérico e engraçado dos personagens dele.

    responder
  • Lenise Battisti

    Você tem um talento incrível para a escrita, fico sem palavras quando leio seus contos, quero ser igual você quando eu crescer HAHAHA Parabéns pela criatividade, não é fácil se inspirar em determinada obra para criar algo novo, é algo para poucos.

    responder
    • Retipatia

      Oi Lenise! Que delícia ler essas palavras! Muito obrigada, de coração! <3 <3
      xoxo

      responder
  • Sueli

    Tão incrível eata estória baseada nestes personagens tão fofíneo do Tim e eu amo as estórias do Tim.bjsss

    responder
  • Erika Monteiro

    Oi Rê, tudo bem? Achei simplesmente incrível essa sua criatividade em transformar uma homenagem em conto. No início ficamos um pouquinho em dúvida mas conforme vamos lendo é possível compreender a ideia que você teve. Muitas vezes determinamos onde queremos chegar chegar, quais nossos objetivos, sonhos, porém num dado momento nos questionamos se ainda somos aquela pessoa que sonhou com tudo aquilo. Acredito que a vida muda, nós mudamos, nossa visão sobre tudo muda, é preciso ter serenidade para compreender que hoje somos melhores, mais adultos e confiantes do que ontem. Está tudo bem mudar de caminho, está tudo bem desejar outras coisas, o que não podemos é parar de sonhar e querer realizar nossos projetos mais íntimos. Isso nos traz realização, felicidade, e brilho nos olhos. Dúvidas todos temos, mas é preciso voltar para a estrada e seguir em frente. Amei demais seu texto. Parabéns!

    PS: Feliz dia do blog atrasadinho. Obrigada pelo recadinho lá no blog, você sabe o quanto sou feliz e grata por tê-la conhecido nesse mundinho né. Tudo de bom pra você sempre! Beijos, Érika =^.^=

    responder
    • Retipatia

      Oi Érika! Ah eu adorei tudo que você analisou! Quando eu escrevo um conto, por mais que eu queira passar alguma mensagem legal, é difícil saber se alguma mensagem, de fato, foi passada com ele. Daí fico feliz que tenha dado para fazer pensar nessa questão da mudança, dos questionamentos. Acho que é comum a qualquer pessoa e condiz muito com meu status atual na vida.
      Feliz blog day para você também linda, eu também te tenho na lista de pessoas mega queridas que conheci aqui nesse mundo blogueiro e fico muito feliz com isso! <3 <3
      xoxo

      responder