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Conto ♥ Devolva-me

Leia ouvindo Devolva-me da Adriana Calcanhoto

São as amarras invisíveis as que mais prendem. Sufocam. São como âncoras soltas em alto-mar, que fazem naufragar em meio ao turbilhão de ondas fortes e agitadas que não cessam.

E são ondas extenuantes, repetitivas. Sempre fazem voltar ao fundo, ao silêncio maciço que as águas tomam por debaixo da maré.

Retornam os mesmos sentimentos. Revoltosos. A pergunta que não quer calar é sempre a mesma: as remadas são fortes o suficiente para combater a tempestade ou não?

Perder todas as amarras, todos os nós cegos que fazem ver o que os outros desejam ver e não aquilo que deveria ver. O que é a realidade afinal de contas? Aquilo que se vê ou aquilo que se crê?

Não há menção ou lista, guia ou manual. Nada que faça com que seja mais fácil descascar todas as camadas intangíveis que foram vestidas ao longo dos anos.

Me levanto da cama e caminho em direção a porta, o barulho que vem do closet se misturando aos meus passos abafados pelo carpete. Entro no escritório e subo na cadeira, pegando a caixa cor de terra, com a tampa que já não fica fechada. Desço e me sento no chão, o conteúdo da caixa espalhando-se ao meu redor como se quisesse se libertar do seu clausuro.

Os papéis tomam a forma do chão, minha caligrafia espalhada em todas as suas formas. De alegria à tristeza, contentamento à saudade.

A lixeira embaixo da escrivaninha é puxada por minhas mãos. Ao meu lado é colocada.

É fino, range. Não como madeira. É agonia e soa por cada fibra sendo obrigada a esticar-se até o ponto de se partir. Um trabalho lento, meticuloso.

Um a um a forma dos papéis começam a mudar. Não são mais o que eram, são qualquer outra coisa.

– O que você está fazendo? – O som é distante e não tem o condão de fazer com que minhas mãos cessem o trabalho. Meu corpo segue na melodia fina que é criada.

– Catherine! – A voz de Lena soa alta, urgente.

– Por que a urgência? – Meus olhos não se desviam da recente forma que o chão ganhou.

– Urgên… Você está rasgando as minhas cartas, Cate! – Um respiro fundo. Profundo. Dela, não meu. – Que diabos pensa estar fazendo?

– Não são suas cartas, Lena, fui eu quem as escreveu e quero de volta todas as palavras que coloquei aqui. – Mais um ranger do papel em minhas mãos.

Ela se abaixa e começa a recolher o papel, devolvendo ao chão sua forma inicial. A caixa não suporta tantos deles, mas ela continua a encher. Encher. Até a borda, além dela.

As letras das folhas que estão em minhas mãos começam a borrar, mas de maneira tão silenciosa que já não me importo com o estado em que vão ficar. Separo mais fibras de celulose.

– Cate, por favor, pare! – As maçãs de seu rosto estão banhadas e não há silêncio nelas. O corpo inteiro treme e chora, como se um frio sobrenatural passasse por ele.

Largo as folhas grudentas e amassadas e me levanto, saindo do escritório e retornando ao quarto.

– Cate! – A voz dela me segue, ainda urgente. Ainda não sei a razão.

– Pare de me chamar, Lena. – Não tenho certeza se as palavras saíram de minha boca ou se ficaram presas em minha garganta.

– Por favor, olhe para mim!

Subitamente meus pés param. Não querem continuar, mas tampouco posso simplesmente me virar e fazer o que ela me pede. Talvez por perceber isto, Lena caminha até minha frente.

Encontro aquele olhar. Profundo. Entristecido.

– Cate, me perdoe, mas é o melhor para nós duas.

Eu rio e meu corpo se arrepia pelo gelo do riso.

– Você decidiu, Lena. Mais uma vez, você decidiu algo absurdo porque está assustada demais. – Não ouso proferir as exatas palavras. As que ela mesma chegou a me dizer.

– Cate, eu… – Ela balança a cabeça em negativa. O fato de não conseguir dizer e estar prestes a se afogar deveria ser suficiente.

Mas eu já pedi. Implorei, na verdade.

Vá embora, Lena. Não volte mais. Apenas desapareça. – O choro que ela tentava conter surge e a envolvo em meus braços. Os seus logo me apertando, nossos corpos antes tão habituados ao abraço agora estão tesos e cheios de remorsos. – Não me procure mais. – Minhas palavras soam baixas, mas são próximas ao seu ouvido.

É o suficiente. Ao menos, para mim. Me solto dela e continuo a caminhar em direção ao meu quarto. Subo na cama e me sento. E aguardo os barulhos cessarem.

O tilintar das chaves sendo deixadas na mesa, o barulho do sapato na madeira do chão, o suave bater da porta no batente. É fugaz.

Há apenas o bater forte das ondas no ancoradouro. Mas, ao menos, agora se está em terra firme e não em alto-mar.

Este conto foi escrito para o Desafio do grupo Café com Blog, e deveria utilizar a imagem do topo da postagem e a palavra fugaz, que, espero, tenha sido representada no texto para além da sua citação explícita. E, para quem ouviu a música sugerida ou mesmo a conhece, deve ter percebido a inspiração que veio dela.

Para quem sempre me pergunta mais sobre os personagens dos contos, Cate e Lena já apareceram por aqui, no Conto Agridoce, e, apesar de não terem nascido propriamente nos contos daqui e sim em uma outra história paralela que estou escrevendo, os contos são pequenos trechos da vida delas.

Que a Força esteja com vocês!

xoxo

Comente este post!

  • Talita Carbone

    Fica encantada em quanto você escreve bem. Que história tocante: triste e bonita.
    Beijos

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    • Retipatia

      Oi Talita! Muito obrigada, fico feliz que tenha gostado da escrita!!! <3 <3 <3
      xoxo

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  • Melissa Kemmer

    Parabéns pelo seu enorme talento! Escreves muito bem! Beijosss!

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    • Retipatia

      Oi Melissa! Obrigada, fico feliz que tenha gostado! <3 <3
      xoxo

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  • Kimberly Camfield

    Rê, que conto incrível esse! (Assim como todos os que leio por aqui )
    Só fiquei confusa um pouquinho, porque quando a Lena sai pela porta e o conto acaba em “agora se está em terra firme e não em alto-mar” ele volta para o início e repete. Não sei se foi proposital ou foi sem querer, mas enfim, está incrível, escrito em um “ritmo” que só você tem ao escrever. É como se eu estivesse exatamente em alto mar, visualizando as ondas batendo, tentando remar contra a maré e me sentindo sufocando, afogando. Então sou transportada para vida de Catherine. Sério, é algo muito mágico isso! Juro que se você escrevesse um livro eu compraria sem pensar duas vezes.
    Sobre “as amarras invisíveis as que mais prendem. Sufocam.” me lembrei de uma palestra que fui no início do semestre. Ok, era sobre calçados, mas uma das palestrantes falou sobre a criação dela e seu grupo para um maratona, onde eles ficaram um dia inteiro criando o conceito de uma coleção de calçados e depois desenvolvendo. E nas fotos conceito do produto, um dos calçados tinha uma série de amarras que eram puxados por ambos os lados da modelo por mãos “invisíveis”. E a explicação do grupo para isso era que todos nós nos sentimos presos, sufocando, tensionados, querendo desesperadamente nos livrar de todas as amarras que nos prendem. Nos libertar. E de certa forma esse conto me lembrou isso.
    Beijão

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    • Retipatia

      Oi Kim!!! Primeiro, era erro, devo ter copiado o arquivo duas vezes e não percebi. Porque geralmente eu não escrevo direto aqui no blog… rsrs Valeu por avisar, já corrigi! <3
      Fico feliz que o conto tenha conseguido te cativar e fazer imaginar o alto-mar e tenha seguido o ritmo 'habitual' ehehe <3 Estamos na meta para escrita do livro, calma que a gente chega lá! ahahah <3
      Bem legal a questão da palestra, eu estava num momento confuso quando escrevi esse conto, então ele meio que refletiu isso... pelo menos nessa viagem com as marés... rs E acho que a explicação do grupo está certíssima, estamos desesperadamente tentando nos livrar de todas as amarras que nos prendem na vida! <3
      xoxo

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  • Amanda

    Antes de ver a música indicada já estava com ela na cabeça por causa do título, rs. Adorei a referência, o texto é tão dolorido quanto a própria essência da música. Mas, apesar de triste (e deu pra sentir a tristeza da personagem daqui), gostei muito da mensagem final. Realmente é melhor sofrer, mas ter a certeza do que se tem, do que viver uma ilusão.
    Beijos! Lindo texto!

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    • Retipatia

      Oi Amanda! Então você já leu o texto com a música em mente! ehehe <3 Esse conto foi realmente bem dolorido, mas sempre tem algo a mais na dor, eu acho. rs Obrigada!!! <3 <3
      xoxo

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  • marinamafram

    Sua escrita é deliciosa Re!

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  • Bruna

    Ah Rê, vc e seus textos <3 quanta intensidade sempre, em cada palavra. Me senti transportada para dentro da cena, transportada para o que ao meu ver, essa angústia dentro do peito de Cate. Senti um desespero nas ações, a necessidade de deixar que se vá mas ao mesmo tempo em que fere mais do que se mostra… E, fico me perguntando os motivos que levaram a esta cena, o passado, os caminhas que trouxeram até aqui. E sobre a música, bem, acho que ela é um clássico, ao menos para mim uma música que marcou que tantas vezes já foi trilha sonora da vida <3 Parabéns Rê, como sempre, encantando com as palavras ^^ beijos beijos!

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    • Retipatia

      Oi Bruna! Ah que delícia ler esse seu comentário! Saber que você sentiu o texto, que ele conseguiu te transportar para a cena, sentir os sentimentos dos personagens e tudo o mais! Tem muitos motivos para essa cena, pode ter certeza, essas personagens têm história longa e, um dia, quem sabe, terei como contá-las por inteiro. <3 Eu também acho essa música clássica, amo muito e ela tem toda uma vibe meio fossa (ahahah) que combina com o conto! rsrsrs Obrigada mesmo!!! <3 <3
      xoxo

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