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Conto ♥ Call It Magic |
Leia ouvindo: Call It Magic – Coldplay Um suspiro ruidoso, difícil, forçado. Foi o último, de toda forma. Minha memória auditiva nunca funcionou tão bem. Mas este não é o tipo de som que se esquece. É do tipo que fica gravado, desejando ou não. – Está pronta? – O som da voz de Clara me desperta. Balanço a cabeça em positivo, mas respondo mesmo assim. – Sim, estou pronta. Saímos de casa e o vento está abafado do lado de fora, dentro do sedã está, literalmente, um forno. Ligo o ar condicionado e deixo as janelas abertas até o ar abafado se dispersar. Assim que o ar melhora, subo as janelas. Clara liga o rádio, mas aperto o botão para desligar logo em seguida. Ela suspira contrariada e começa a mexer em seu Smartphone. Adolescentes são assim, suponho. Não lembro particularmente de como eu era, ainda mais porque, na minha época, não existiam tantos aparelhos eletrônicos. Não que isso justifique qualquer coisa. O caminho é ensolarado e dirijo por quatro horas seguidas, parando já quase na hora do almoço. O ar está ainda mais abafado aqui. Nos sentamos no restaurante de beira de estrada e um rapaz que deve ter a idade de Clara nos entrega os cardápios com a expressão mau humorada. Ela escolhe batatas e um sanduíche e eu peço o mesmo. Não estou com fome realmente, não tenho fome há muito tempo. – O que eles fazem, de especial? – Ela pergunta. – Quem? – Às vezes não sei se ela está falando comigo ou com seu telefone. – O circo, ou seja lá o que for que estamos indo ver. – Não é um circo, é um parque. – Corrijo. – E o que têm de especial nele? Pesquisei e não vi nada legal, nem um pouco próximo do Cirque du Soleil. Mimada. – Não, não tem. Não é um circo, Clara. – Mas você disse que era mágico. Você usou exatamente esta palavra. – Mágico não significa circo. – Não, mas é um indicativo. – Não, é um parque tradicional. – Me pareceu pela foto e, inclusive, eu só achei uma. Que tipo de lugar não tem divulgação pela internet, hoje em dia? – Lugares especiais. – Isso parece papo furado. – Ela resmunga e cruza os braços, logo após colocar os fones de ouvido, gesto que significa ‘não quero mais conversar‘. Não que conversemos muito ou com muita frequência. É simplesmente impossível fazer isso, na maior parte do tempo. Há uma razão para eu ter dito, com todas as letras, para George que ele não tinha o direito de nos deixar. De maneira alguma eu estava preparada para ter uma filha de quatorze anos, não quando eu mesma sequer terminei a faculdade. Não tenho sequer o dobro de sua idade. De fato, mal se completa dez anos de diferença. Talvez se estivesse ao alcance dele, ele teria atendido ao meu – desesperado – pedido. Estava furiosa, é claro. A morte nos deixa assim, furiosos, entristecidos, inconformados. Clara está exatamente neste ponto: inconformada. Como se passar por sua fúria e tristeza não tivesse sido suficientes, ela resolveu chegar ao novo status. Não sei lidar com isso, nunca soube lidar com meus próprios sentimentos, quem dirá com os de outra pessoa. E, analisando bem, a...
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