às quartas nós lemos a GLit

receba a newsletter sobre literatura, criatividade e criação de conteúdo gratuitamente no seu e-mail

Conto ♥ Ligação

Sugestão de música para leitura: Broods – Mother & Father

“O que há de ser, será.”

Essas foram as últimas palavras que saíram da boca dela. Sempre fora assim, algo inócuo e mais clichê do que os ditados populares. Como se uma força misteriosa definisse todo o nosso destino. Ou como se destino, de fato, existisse.

Claro que não existe droga nenhuma dessas. Tudo não passa de um consolo de que, se as coisas estão indo de mal a pior, quer dizer que a culpa não seja – totalmente – sua. Quer dizer que, ainda que você faça tudo da melhor maneira, que dê o seu máximo, não significa que você chegará lá.

Onde é esse ‘lá’, afinal de contas?

– Lidi? – Só uma pessoa me chama assim. Dou as costas para o caixão de mamãe e é ele quem está ali, parado com a expressão provavelmente mais desolada do que a minha, perdido e ciente de que está lá contra vontade da maioria.

Acho que dessa vez faço parte da maioria.

Enxugo o canto de meus olhos, dando-me conta de que nunca chorei na frente dele. Sou melhor do que isso, sempre repeti para mim mesma.

João não se importa com minha mudez e se aproxima de mim, o suficiente para me dar um abraço que me faz sentir todo seu corpo pressionado ao meu. Meus olhos ardem e os fecho com força, reprimindo as lágrimas que estão por demais insistentes hoje.

Perco a noção do tempo enquanto nos abraçamos, me focando apenas no seu cheiro e no formato de seu corpo junto ao meu. Tudo me é tão familiar, como se ele carregasse a sensação de lar com ele.

Agora, tudo que quero é dizer, ‘vamos embora, me leve para casa‘. Mas ainda tenho um enterro para acompanhar e sei que, por convenção social ou não, é o que preciso fazer.

Seus braços apenas se afastam de mim quando eu mesma relaxo meu toque, numa sincronia afinada e real.

– Obrigada por vir. – É o que consigo dizer, apesar de saber que, na verdade, não queria que ele estivesse aqui.

– Não tem que agradecer.

– Sei disso. – Ele sorri de modo apagado. Nenhum dos seus estonteantes sorrisos que fizeram apaixonar-me.

Ele não diz nada e eu também não. Mas nunca houve silêncio desconfortável entre nós, não é algo que surgiria neste momento.

De todos que estão aqui, João é o único que tem total conhecimento dos meus sentimentos. Eu não amava a mulher que chamava de ‘mãe’, assim como ela nunca me amou. É um equilíbrio perfeito de sentimentos. Ela cumpriu suas obrigações enquanto eu precisava dela e eu cumpri com as minhas enquanto ela precisou. Na necessidade de uma, a outra estava lá. Pelo delicado e frágil elo da polidez social. É o que move o mundo, na verdade.

João solta minhas mãos e, em uma fração de segundo me pergunto a razão, que é respondida quase que de imediato. Igor está se aproximando de nós.

– João, obrigado por vir. – Igor fala de maneira educada, estendendo-lhe a mão. Na verdade, ele nunca é deseducado, por assim dizer. Sua educação provavelmente lhe garantirá, ao menos, uma passagem direta para o céu, como mamãe costumava falar. Não que eu acredite em céu.

– Igor. – João aperta a mão de Igor e o silêncio fica incômodo, logo a seguir.

– Com licença, vou ao banheiro. – Parte da minha polidez da frase vem dos anos de convívio com Igor.

Ambos assentem e começam a falar de qualquer coisa desimportante. O acúmulo de pessoas na sala do velório é absurda. Mamãe era do tipo de pessoa marcante. Nem todos podiam amá-la, mas todos se lembram dela, sem dúvidas. E isso, ao que me parece, é o bastante.

Tranco a porta do banheiro atrás de mim e deixo meu corpo pesar sobre a porta. As lágrimas enfim começam a rolar. Sem barulho, silenciosas como todas as outras que costumo exprimir.

Me recupero o mais rápido que consigo e jogo água no meu rosto, limpando quaisquer vestígios. Reprendo meus cabelos e saio do banheiro. Igor está nas proximidades, disfarçadamente aguardando minha saída.

Ele vem em minha direção e seus olhos fazem a pergunta óbvia: ‘está tudo bem?’.

– Vai ficar. – O ‘eu espero‘, completo apenas mentalmente. A morte é dolorosa para quem fica, não apenas pela perda, nua e crua, com ela, sou capaz de lidar. Sempre lidei.

O problema são as pessoas. Que insistem em perguntar e bisbilhotar. Parecem solícitas, preocupadas e tentam, sem sucesso, serem empáticas.

Isso não funciona comigo, nunca funcionou. A preparação do enterro, as ligações para os familiares, amigos e etc., esses são fardos demasiadamente pesados. Igor carregou tantos quantos conseguiu, evitando ao máximo que eu tivesse que dar sequer uma palavra. Mas ele não consegue evitar os olhares de pena, piedade, de compaixão e amor.

Queria gritar para todos que isso é uma grande farsa, mas não posso. Não porque não queira. Mas porque isso magoaria exatamente aquelas poucas que amo.

É uma tarefa complicada a tarefa de enterrar alguém que acreditava em absolutamente tudo, por alguém que não acreditava em absolutamente nada. Simplesmente porque não há nada a acreditar.

O pastor começa seu discurso sobre a passagem, sobre o amor e não sei mais o quê, não estou, de fato, ouvindo as palavras. Elas são indiferentes.

Igor não sai do meu lado, com meu braço entrelaçado à sua cintura e o seu rodeando meus ombros. Vejo que João também não partiu, provavelmente ficará até o fim.

Seguimos em procissão até o local onde o caixão será enterrado. A simples ideia de ter minhas entranhas devoradas por vermes debaixo da terra me dá calafrios. Já disse a Igor que não quero ser enterrada. Na verdade, acho que foram as primeiras palavras que proferi quando mamãe morreu. ‘Por favor, não me enterre quando eu morrer‘.

O caminho não é longo, mas cada passada parece pesada demais, com tantas e tantas outras pessoas a nos seguir. Gostaria de passar um questionário e perguntar a cada um a razão exata de estarem aqui. Talvez dê uma boa noção da realidade, as pessoas costumam ser mais sinceras no papel.

Jogo a camélia cor de rosa que está em minha mão antes que joguem a terra. Era a flor favorita de mamãe. O que me é muito estranho, ter uma flor favorita. As pessoas têm um fascínio estranho e pungente acerca de favoritos. Não é algo que deveria existir.

Logo as pessoas recomeçam a cumprimentar a mim e a Igor, em despedida. O que é totalmente desnecessário, mas, aparentemente, sou a única que pensa assim.

– Quer se despedir? – A voz de Igor me tira dos meus devaneios.

– O que?

– João, acabou de sair em direção ao estacionamento. Te espero no nosso carro.

Antes mesmo que eu responda, ele dá um beijo em minha têmpora e sai em direção ao estacionamento. Nosso carro está parado à esquerda e, aparentemente, o de João, para o lado oposto.

Sigo com passos apressados na direção de João e, quando o alcanço, ele já está abrindo a porta de seu Impala velho. O amor dele pelo carro é bem mais compreensível do que outras coisas.

– Lidi? – Seu cenho se franze ao me ver e um relance de expectativa passa rapidamente, sendo ofuscado pela minha expressão de ‘não é o que você está pensando’.

– Vim me despedir.

Ele assente, com os ombros um pouco curvados. Quando foi que envelhecer soou tão bem para ele?

Ficamos parados nos encarando, esperando que algum dos dois diga algo. Ele não parece disposto a dar a primeira palavra e é certo que eu também não o farei. Avanço até ele e o abraço, com mais força do que julgaria ser capaz, ouvindo as batidas de seu coração ressoarem em seu peito.

– Eu amo você Lidi. – É possível que as palavras que eu deseje ouvir sejam também as que eu não queria ouvir?

Ele me encara e seus olhos estão marejados. A vida é assim, incrivelmente estúpida. Não há destino que te guie, não há manual de uso correto, não há chance de – se você acredita em tais coisas – encontrar sua alma gêmea, e ficar com ela. Particularmente, não acredito em almas gêmeas. Apenas na ligação que desenvolvemos com algumas pessoas. Mas nem sempre a vida permite que criemos as oportunidades para que permaneçamos com essas tais pessoas às quais somos conectadas.

– Eu amo você também João. – Pingos d’água começam furtivamente a cair e me despertam para o que eu estaria prestes a fazer depois de dizer um absurdo desses.

– Como você está, de verdade? – Ele pergunta.

– Péssima. – A sinceridade é sempre assim.

– Há algo que eu possa fazer por você? – Eu poderia ter um ímpeto de filme romântico, dizer que sim e pedir que ele me beije. Ou mesmo, beijá-lo. Eu poderia fazer isso. Mas seria ridículo demais, porque, no fim do dia, eu ainda estaria péssima, com o acréscimo de uma sensação ainda pior por ter beijado outro homem que não fosse meu marido. Ainda que esse homem seja João.

Eu apenas balanço a cabeça em negativa, soltando meus braços e me afastando dele em alguns passos.

João assente e entra em seu carro, que eu observo partir pelas curvas do estacionamento. Quando não consigo mais vê-lo, sigo em direção ao nosso carro e vejo Igor fumando um cigarro, apoiado no capô. Seu terno está salpicado de gotas da chuva. Já tem pelo menos dois ou três cigarros apagados no chão.

Quando me vê, ele dá a última tragada e joga a bituca no chão, apagando-a com seus sapatos pretos. Ele abre a porta do carro e entro, ainda calada.

Quando ele se senta no banco, coloco minha mão na sua, impedindo-o de dar a partida. Igor me encara, seus olhos anuviados pela dúvida.

– O que foi? – Suas palavras são macias.

– Porque fez isso?

Ele reflete um pouco antes de responder e agradeço por ele não ser dissimulado ao ponto de perguntar a razão.

– Eu não sei… acho que entendo a ligação que vocês tem, só isso. Achei que quisessem se despedir… a sós.

Claro que ele entende. Ele mesmo teve sua parcela na vida. Que, obviamente, não sou eu. Talvez seja um golpe de sorte que, se é para ficar separado, que um deles não esteja vivo. É menos embaraçoso visitar o túmulo de um ex do que visitar um ex vivo.

Me aproximo dele e lhe beijo. De um jeito que não faço há muito tempo, com amor. Amor de verdade e não só pura paixão ou desejo. Ou o que quer que nos tenha unido em nossa existência efêmera e superficial, como compreensão. E é molhado, porque, dessa vez, as lágrimas não são mais contidas.

Ele retribui com a mesma intensidade e só nos largamos quando meus lábios já estão quase dormentes e doloridos.

– Eu amo você, Igor. – Alguns diriam que é pura blasfêmia, mas se há algo que não me arrependo em contrariar a minha mãe, é de quando disse a ela que é sempre possível amar várias pessoas ao mesmo tempo. Do mesmo modo ou de modos diferentes. Fazemos isso sempre.

– Eu também amo você, Lidia.

O caminho de volta para casa parece mais leve e paramos apenas para comprar o jantar. Assistimos à TV, com um romance bobo e vamos juntos para cama. Fazemos amor. Na realidade, não costumo separar sexo e amor com tanta frequência assim em minha cabeça.

Não demora para que Igor esteja dormindo, mas meus olhos insistem em permanecer abertos. Se os fecho, tudo que vejo é vazio e isso me assusta.

Meu telefone vibra e só o pego quando ele pára de sacudir no criado mudo.

1 ligação perdida

Remetente João

A curiosidade é sempre a derradeira da humanidade. Saio do quarto com minha camisola nas mãos e fecho a porta para não acordar Igor. Me visto e retorno a ligação.

– Ainda acordada?

– Claro que sim. – Já passam das quatro da manhã.

– Desça.

– O que?

– Estou na porta do seu prédio, venha aqui embaixo.

– Ok. – Simples, é claro.

Visto o casaco que está no sofá e chamo o elevador, ainda com o telefone em minhas mãos. Caso Igor acorde e não me encontre, é claro também.

O elevador chega ao térreo e cumprimento o porteiro da madrugada, que olha com a cara curiosa para minha saída sorrateira.

Ainda está escuro do lado de fora e uma brisa fria de maresia me alcança. João está parado apoiado em seu Impala, segurando uma garrafa de champagne – ou algo parecido – e duas taças compridas.

Paro a menos de um metro dele.

– Quando está tudo uma droga, o que fazemos? – Sorrindo um sorriso quase apaixonante.

– Nós celebramos, é claro. – Respondo, sorrindo.

A parte mais louca de nosso relacionamento é que, sempre que algo estava muito, mas absurdamente ruim, nós celebrávamos. Não porque gostávamos da ideia de algo ruim estar acontecendo, mas porque isso nos daria, no mínimo, uma boa razão para rir. E, para beber muito, sem remorso, é claro.

Dou o braço para João e começamos e caminhar em direção à praia. Alguns metros e estamos com a areia em nossos pés.

– Esperto, descer já sem calçados. – Ele diz.

– Sempre fui a mais esperta de nós dois. – Falo, pegando as taças de sua mão e retribuindo seu riso.

Nos sentamos à poucos metros da água, na areia seca, e abrimos a garrafa, enchendo as taças. Provo o líquido borbulhante, que está gelado e delicioso.

Nos recostamos um no outro e observamos o vai e vem das ondas enquanto bebemos. E continuamos a fazer isso até que o sol começa a despontar no horizonte, colorindo o céu e as águas do mar de tons claros de amarelo e laranja, suavemente recoberto pelas inúmeras nuvens espalhadas no céu.

– Acho que devemos brindar. – Ele fala, erguendo a taça, num bonito contraste com o céu colorido.

– A que vamos brindar? – ‘A nós‘, me parece brega e real demais, ao mesmo tempo, apesar de ser a primeira coisa que me vem à cabeça. Sempre brindamos ao maior dos infortúnios momentâneos.

– A nós, é claro. – Ele dá eco aos meus pensamentos infames.

– A nós, então. – Nossas taças se tocam suavemente, tilintando com o líquido dourado que combina perfeitamente com as cores do nascer do sol.

E eu bebo o conteúdo da taça, certa de que, o que há de ser, será.

…Fim…

Este conto foi escrito para o Desafio Imagem & Palavra do Grupo Interative-se, que deveria utilizar a palavra ‘ligação’ e a imagem do post.

xoxo

Comente este post!

  • Brunella Vettorato

    Não é atoa que você e colunista de um revista ♥ Você e maravilhosa ♥
    O que há de ser, será.” ontem eu falei exatamente essas palavras para meu marido hahaha
    ficou ótimo seu texto . Parabéns

    responder
  • bhlauren

    Tem tempo que não leio contos tão bem elaborados. Parabéns!

    Até mais!
    Karolini Barbara

    responder
  • Camyli Alessandra

    A creditar no universo e deixar que resolva-se oque tiver que resolver… Angustiante demais para alguém tão ansiosa quanto eu…

    responder
  • Gaby

    Olá, Renata!
    Gostei bastante do seu conto. ♥ Li do começo ao fim sem interrupções. Nota-se que foi escrito com muita sinceridade.
    Além disso, a imagem é muito bonita.
    Beijos :*

    responder
  • Ana Carolina Andrade

    Uau! Que texto incrível.. Adorei! Parabéns pelo trabalho .

    responder
  • Dayane Dantas

    Estou morantando o meu post para esse desafio. Você arrasou, adorei o texto, bem escrito. Parabéns.

    responder
  • artoflifeandbooks

    Devo admitir que seu conto gera um pouco de reflexão, pelo foi assim comigo e eu gostei muito da forma com que você escreve.
    Você é uma boa escritora e tem bastante talento.

    responder
  • Thaís Pietrobon

    Menina, como vc escreve bem! A história é envolvente e consegue prender o leitor, mesmo que o texto seja bem extenso. Adorei, sucesso e beijos

    responder
  • sarah kaeda

    História envolvente demais, que que isso? hahahaha
    Amei mesmo, sério.
    Sua escrita é fluida, solta e prende, entende?
    Beijos

    responder
  • Juliana Araújo

    Desafios são sempre muito bem-vindos. Amei o modo que você usou a imagem para expressa-la em um conto, parabéns! Fiquei motivada a escrever um também 😀

    responder
  • Vitória Bruscato

    Me desculpe se o meu comentário for meio “vazio”, eu nunca sei o que comentar em textos, só posso dizer que amei! Já li um outro texto seu e acho legal como você se aprofunda nos assuntos e faz com que quem está lendo queira ler mais. Também gosto pois você não escreve o óbvio, sabe? Parabéns

    responder
  • Mariana Fialho

    Que conto cativante! Não consegui deixar o celular de lado até terminar. Você conseguiu construir personagens quase reais em um único conto… achei isso incrível! ❤
    Você escreve muito bem, mesmo. Parabéns! *-*

    responder
  • Dandara

    Mais um conto maravilhoso !! Nossa adorei. Seria muito pedir um livro inteirto de cada conto ? Hahaha. Um super beijo

    responder
  • yasgraeml

    Adorei o conto!!! Super cheio de detalhes realmente me senti na história!!!

    responder
  • Gislaine

    Por que ela não está com o João? O que vai acontecer com eles? O Igor vai ficar magoado? Meus deuses, mulher, amei seu conto e que mais, muito mais!

    responder
  • Kimberly Camfield

    “A vida é assim, incrivelmente estúpida.” Eu amei demais essa frase! Amei demais esse conto! E preciso dizer que me enchi de perguntas e fiquei triste quando terminou, porque queria saber mais haha Por exemplo, por que ela está com o Igor e não com o João? Como isso aconteceu? Eu simplesmente adorei os personagens e acho que você fez um uso tão bom da palavra do desafio que nem precisaria ter ela escrita no texto para entender que obviamente há uma ligação entre os personagens. Parece que a palavra está lá, implícita em cada linha, em cada diálogo, em cada parágrafo e isso é sensacional. Acho que você deveria investir na carreira de escritora pra valer, juro que seria uma das primeiras a comprar o livro hahha
    Beijooos

    responder
  • mami

    bela história! amei 🙂

    responder