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Um Conto de Ano Novo

Chega uma época do ano – sempre o fim do ano – em que todos acreditam. Em quê? Em qualquer coisa. Em absolutamente tudo. Como se, magicamente, o clique do relógio pudesse trazer aquelas milhares de oportunidades que desperdiçamos o ano inteiro. Como se tudo que desprezamos por anos, pudesse ser repaginado e, de repente, se tornasse mais alcançável. Como se segundas chances fossem reais e uma injeção de motivação descarregasse em todos.

– Ah! Sua descrença me faz rir, Lorelai.

– Não, é verdade. Cada vez que alguém fala de lista de metas, objetivos e outras idiotices do gênero, me seguro para apenas revirar os olhos e não vomitar em cima delas. – Repondo, fazendo minha melhor revirada de olhos.

– E qual o problema em possuir metas e objetivos, seja mais clara.

– O problema não é ter metas ou objetivos. É o fato de lembrar deles, no máximo, no último mês do ano. Essa é a raiz do problema. As pessoas ficam misteriosamente motivadas nos últimos dias do ano e, não chega nem sequer o meio de janeiro e já deixaram tudo de lado. Deixando suas metas e objetivos acumularem e a rotina entediante e estressante dominar novamente. Nenhuma mudança real, nada é real. É apenas o hábito que as fazem pensar que a mudança de um dia para o outro irá acontecer. Afinal é isso, apenas a mudança de um dia para o outro.

– Lorelai.

– Sim, Tabatah? – Falo enquanto dou mais uma garfada da deliciosa lasanha.

– É apenas uma festa de virada do ano.

– Eu posso argumentar sobre a questão da diferença que o horário de verão fará e a diferença de tempo de rotação da Terra, reposta apenas nos anos bissextos e que talvez quando comemoramos a virada do ano não seja exatamente a virada do ano.

– Eu não sei porque ainda insisto com você. – Ela fala, rindo da minha argumentação e revirando os olhos. Bem parecido com o modo como faço, o que, provavelmente, indica que seja o nosso parentesco comandando.

– Sabe, se mudar de ideia, todos chegarão as dez.

– Às dez da manhã? Não parece muito cedo?

– Às vinte e duas. – Ela fala enquanto se levanta e pega sua bolsa. – E, só por todo esse drama, você paga a conta.

– Mas eu sempre pago a conta! – Respondo, quase indignada, se não achasse Tabatah tão absurdamente cara de pau.

– Tchau irmãzinha! – Ela fala e segue para fora do restaurante.

Pela ampla janela, a vejo entrando no carro de George. Eles trocam um selinho e ela balança o rabo de cavalo daquele jeito. Aquele jeito que faz só quando está apaixonada.

Afasto a pontinha de inveja pelo fato de que Tabatah tem o grande dom de conhecer as pessoas certas e de apaixonar por elas. Eu, costumo escolher entre uma enorme lista de piores pessoas. Aquelas que nunca entrariam na lista do Papai Noel, como eu. Ou, se escolho adequadamente, simplesmente não sei o que fazer.

Saio do restaurante e sigo para casa. É estranho não ir trabalhar, ainda que seja um sábado. É ótimo trabalhar aos sábados, deixa o fim de semana mais curto. Ainda tenho metade do dia disponível e simplesmente não sei o que fazer com ele.

Há uma feira de animais na praça e resolvo passar por lá.

– Bem-vinda, deseja adotar algum bichinho hoje? – Meus olhos sobem até a moça que está com um sorriso mais perfeito que o da Barbie, logo na entrada.

– Ah, vou apenas dar uma olhada. – Ela se esforça para não deixar o sorriso desaparecer e fala para que eu fique à vontade. Talvez este seja o tipo de frase que só possa se dizer em um bazar ou loja de sapatos.

Há vários gatinhos fazendo manha para as pessoas e cachorrinhos empolgados. Matei meu peixe em duas semanas, acho que qualquer um desses teria um destino muito trágico em minha posse e eu seria presa, por maus tratos. Realmente não é uma boa opção.

Um menino de uns sete anos está com um pequeno coelho nas mãos. É de um amarelo dourado, ou caramelo, não sei bem afirmar. O coelho, não o garoto. E é a coisa mais fofa que já vi.


O garoto está animado, mas seus pais preferem um cachorro. E assim, o pobre coelho volta para sua gaiola, sozinho. Triste, abalado.

Quase ouço o crec do meu coração. Como alguém pode preferir um animal grande, babão e que late, em vez dessa pequena bola de pelo?

– Vou levar. – Antes que meus neurônios percebam o que estou fazendo, estou saindo com o coelho em uma gaiola.

Coelhos em gaiolas. A ideia em si já é ridícula o bastante. Além disso, estou com uma sacola cheia e pesada com comida para coelho, petiscos, uma caixa de areia, feno e coisas que ainda não sei a função.

Em casa, coloco a gaiola na mesa da cozinha.

– Você é tão miudinho. E fofinho. E pequeno. E bonitinho. – Abro a porta da gaiola e o pego com cuidado.

É tão pequenino e, bem, fofo. Coloco água na tigela enquanto o seguro com apenas uma mão.

Ele bebe e parece pacato. Coloco ração também, mas ele não come. Não deve estar com fome, afinal.

O telefone toca e vou atender.

– E então, mudou de ideia?

– Não Tabatah. Mas fiz algo inusitado, você vai se orgulhar de mim!

– Inusitado? Isso não existe no seu dicionário!- Claro que existe! – Me defendo, fingindo uma ofensa.

– E o que foi inusitado?

– Adotei um coelho! Acho que vou chama-lo de Caramelo.

– Lorelai você está louca? Você conseguiu matar um peixe de fome! – O peixe me assombrando novamente.

– Não vou discutir com você, Tabatah. Ele é fofo, devia vir visita-lo.

– Estou preocupada com você Lorelai. Desde quando age impulsivamente?

– Desde sempre. – Falo na defensiva.

– Ah, claro que sim… – O sarcasmo dela chega a ser cruel. – Devolva, Lorelai. E feliz ano novo.

Ela desliga. Quando foi mesmo que minha irmã se tornou minha mãe?

– Seremos melhores amigos, Caramelo.

Pego o bichinho e sigo para o sofá. Ligo a Netflix e coloco Narcos, vou começar a segunda temporada, então, terei entretenimento para toda a virada do ano.

Já estou no sexto episódio quando a campainha toca.

– Que droga, quem será, Caramelo? A esta altura, as pessoas já devem estar celebrando o ano novo, não tocando campainhas a esmo.

Abro a porta e me deparo com Ana. Anabeth, na verdade. Ela está com um sorriso meigo, bem, todos os sorrisos dela são meigos. E parece acanhada. E claro, está linda com um grande casaco grosso, um vestido de lã preta e botas de cano bem alto da mesma cor. Um gorro combinando com o vestido está em sua cabeça. Suas bochechas estão coradas pelo frio e fico embasbacada com o fato de notar tudo isso em segundos, enquanto faço uma cara de surpresa, quase deixando Caramelo cair de minha mão. Quase.

– Ana, oi.

– Oi Lorelai.

Estou chocada ao vê-la aqui, fui eu quem saiu gritando e batendo portas e a deixou chorando, sozinha, em casa. Acho que me assustei com a primeira pessoa decente por quem me apaixonei e, provavelmente, por ter sido correspondida.

Ela fica visivelmente sem graça e o frio do lado de fora começa a me incomodar.

– Ah, entre. – Falo finalmente, saindo do meu estupor.

Ela entra e fecho a porta, cessando o vento gélido.

– Sua irmã disse que você precisava de companhia para ir até a casa dela e pediu que eu viesse pegá-la.

– Ah, preciso?

– Bem, seu carro. Ela disse que está na oficina.

– Ah claro, meu carro. – Tabatah me paga. – Eu vou só terminar de me arrumar e, já podemos sair.

Ela assente e então nota Caramelo em minha mão.

– Ah, é seu? – Ana adora bichos. Todos eles, até aranhas, lagartixas e outras coisas estranhas. Até mesmo baratas. B-a-r-a-t-a-s!

– Sim, este é Caramelo. Quer segurá-lo, enquanto termino?

– Sim, claro. – Sinto uma leve excitação surgindo em minhas mãos onde elas tocam a pele de Ana.

Sigo para a TV e a desligo, fingindo que não estava acompanhando nada.

Vou para o quarto, ainda xingando mentalmente Tabatah repetidas vezes.

Coloco uma calça justa para calçar minhas botas marrons e um cardigã caramelo, quase da cor do meu Caramelo.

Me olho no espelho e vejo o quanto estou descabelada. Merda! Eu atendi a porta assim? Prendo meu cabelo em um coque alto e passo um batom.

Chego na copa e arrumo bastante ração e água na gaiola enorme de Caramelo. Ele terá que ficar algumas horas sozinho, afinal.

– É resolução de fim de ano? – A voz de Ana quase me faz pular de susto, mas disfarço com um pigarro.

– Como assim?

– Você nunca foi fã de animais e, muito menos uma cuidadora muito zelosa. Se lembra do meu gato, o Lasanha? – Ela começa a perguntar, empolgada. Em seguida, seu olhar desvia do meu e ela cora.

Claro, a memória do gato. Brigamos tanto por causa dele. Pelo menos ela não falou do peixe.

– Sim, claro que me lembro.

Ela balança a cabeça, concordando.

– Podemos ir. – Falo, tentando ignorar o momento estranho.

Seguimos para o lado de fora e vejo Caramelo abatido em sua gaiola. Não é justo deixa-lo sozinho em sua primeira noite em casa.

– Não posso deixa-lo.

– O que? – Ana para nas escadas.

– Caramelo, não posso deixa-lo sozinho!

– O coelho? – Ela pergunta, checando.

– Só um minuto. – Falo, voltando e o pegando na gaiola.

Abraço ele em meu casaco e dou um sorriso para Ana, enquanto passo por sua cara atônita no corredor.

Entramos em seu carro e ela liga o aquecedor. Acho que se a situação fosse inversa, eu jamais a buscaria para uma festa de ano novo e não seria apenas porque eu não vou a festas de ano novo. Bem, estou indo a uma agora.

Ficamos em silêncio em todo o trajeto e quando ela desliga o motor, faltam menos de cinco minutos para meia noite. Não havia me dado conta de que estava tão tarde.

– Porque foi me buscar?

– O que?

– Não me responda com outra pergunta, Ana. Porque deixou que minha irmã a persuadisse a ir até a minha casa?

– As metas.

– Que metas? Fale algo que faça sentido.

– Metas de fim de ano. Prometi a mim mesma que não guardaria rancor, tristeza, mágoa ou qualquer sentimento ruim.

– Ah, essa baboseira… – Resmungo.

Baboseira? Loreilai em que mundo você vive? Você é a pessoa mais difícil que já conheci, mas foi a única que me deu razão para seguir em frente sempre. Independente do que estivesse acontecendo. Cada vez que eu pensava em desistir, você estava lá. E nunca me deixou retribuir nada disso. – Ela fala tudo de uma só vez, quase ofegante ao parar de falar.

Resoluções de ano novo… ridículo.

Abro a porta do carro e vou em direção ao apartamento de Tabatah. Sigo em passos pesados e deixo Caramelo bem enrolado em meu casaco. O frio está cortante.

Ouço o alarme do carro sendo bloqueado e, quando toco a campainha, ouço os passos das botas de Ana na neve fofa que cobre o chão.

– Típico de você, fugir em uma discussão.

– Eu não fugi. Não temos pelo que discutir.

– É claro que não. Eu fui atrás de você porque ainda a amo Lorelai, não consegue perceber?

Eu quase paro de respirar um instante e sou salva pela porta sendo aberta por Tabatah.

– Ah meninas! Falta menos de um minuto, já já começa a contagem regressiva! – Tabatah diz, sorridente como sempre.

Até perceber nossas expressões. Dou um passo para entrar e Ana faz o mesmo, as duas estacando abaixo do marco da porta, sem ter como passar sem nos espremer.

George, o namorado de Tabatah aparece e a leva, enquanto eu e Ana ficamos estacadas, uma esperando que a outra dê o primeiro passo.

Ao fundo, ouvimos a contagem 10… 9…. 8…

– Me desculpe. – Me ouço dizer. Ela sempre tem razão, e sua meta, na verdade, é uma boa meta. É o tipo de coisa que alguém incrível faria. A cara dela.

“6… 5…” – O coro continua.

Caramelo se contorce em minhas mãos.

– Desculpas aceitas. – Ana fala, sorrindo entre os olhos úmidos.

“3… 2…”

– Caramelo é minha meta de ano novo. – Eu falo, não contendo as lágrimas, que misturam alegria e um alívio em admitir que eu não acho tudo tão idiota assim.

– Também amo você. – Ela sorri e os vivas de ano novo soam junto aos fogos da TV e que cruzam o céu.

– Você acaba de conseguir o que queria garota. – Ela franze o cenho, sem entender ao que me refiro. – Me deu um grande motivo para ter metas para este novo próximo ano.

Ela sorri e se aproxima de mim e, quando nossos lábios se tocam, tudo que consigo pensar é ‘feliz ano novo para a merda do mundo todo’.

Este post foi feito para o Desafio Imagem & Palavra do Grupo de Blogueiras Interative-se! A palavra que me foi dada foi ‘motivação‘ e a imagem é a do coelhinho que está no post e que apelidei de Caramelo!

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  • Cadu Pereira

    Porra, que foda!

    Consegui visualizar todas as cenas e crias as personagens na minha cabeça.

    Pelo jeito, ao que parece, quem mais saiu no lucro foi o Caramelo que vai ter mais gente pra dar amor e carinho pra ele. ahahaha

    Belo conto, de verdade. Parabéns.

    http://www.umavidaqualquer.com

    responder
  • bruna0402

    Eu acho que deixei uma lágrima escapar aqui. Texto maravilhoso! Eu fiquei encantada e queria ler mais e mais. Eu tô apaixonada pelo Caramelo, pode?! Adorei a mensagem, a gente precisa acreditar, se renovar, se dar a chance. Muito lindo! Feliz 2017 pra vc ^^ bjus bjus!

    responder